Ponto de não retorno no SNS?

Se a sangria de Internistas não pára, e começa a ser posta em causa a idoneidade formativa em Medicina Interna num número significativo de hospitais, o SNS atingirá um ponto perigoso de não retorno.

Terminou há dias o período de escolha da especialidade médica para os 2321 candidatos a concurso. Para acalmar os maldizentes, o novo Ministro da Saúde alardeou a abertura do maior número de vagas de sempre (2044), que dava a esperança de se poder resolver o problema da escassez de especialistas em áreas assistenciais nevrálgicas, num espaço de três ou quatro anos. Infelizmente, as coisas correram ainda pior do que no ano passado, em que, pela primeira vez, tinha havido vagas de especialidade não preenchidas, com médicos a optarem por se manterem indiferenciados.

Desta vez, foram 439 os médicos que ficaram de fora, apesar de ainda existirem 161 lugares disponíveis! É evidente que estes colegas terão ponderado bem esta decisão, a meus olhos surpreendente. Suponho que uma parte deles, não tendo vaga na especialidade pretendida, vão tentar obter melhor nota no exame de seriação, para se apresentarem em melhor posição no próximo concurso. Mas, não será despiciente o número dos que vão para o estrangeiro fazer a sua formação, e aqueles que enveredam pelo caminho de tarefeiros no Serviço de Urgência, ganhando muito mais dinheiro, a aproveitar as ganas da juventude. Uns e outros, pensarão que a solução é temporária, só por alguns anos. Sabemos que, na maior parte dos casos, não vai ser assim. Os que forem para o estrangeiro não voltam e aos tarefeiros faltará a paciência para voltarem à formação. O Sistema Nacional de Saúde tem como alicerces fundamentais do seu funcionamento, a Medicina Geral e Familiar (MGF) nos Cuidados Primários, e a Medicina Interna (MI) nos Hospitais.

Deixo aos representantes dos colegas de MGF, as perspetivas do futuro da especialidade, numa população cada vez mais envelhecida e doente. A MI é a especialidade médica mais numerosa no hospital, correspondendo a 14% de todos os especialistas, sendo o seu crescimento exponencial absolutamente necessário para responder a todas as valências assistenciais da sua responsabilidade: Enfermaria, Hospitalização Domiciliária, Cuidados Intermédios, Consulta Externa, Consulta de Doentes Crónicos Complexos, Medicina Peri-Operatória, Medicina Obstétrica, Cuidados Paliativos e Serviço de Urgência. É por isso, que considero muitíssimo preocupante o facto de não terem sido preenchidas 30% das vagas de MI postas a concurso (69 em 235). É evidente que, ao contrário de outras especialidades, a MI goza da garantia de pleno emprego nos anos vindouros, e a evolução demográfica, a par da necessidade de garantir cuidados assistenciais de qualidade com o menor custo, jogam a seu favor.

Por outro lado, o privilégio do raciocínio clínico, popularizado pelo famoso Doctor House, é um apanágio do exercício da MI, e um foco de atração para qualquer jovem médico. Então porque será que os jovens fogem da MI? Há uma primeira razão forte, ligada ao esgotamento físico e mental a que as Urgências hospitalares semanais obrigam, que os Internistas sentem mais que quaisquer outros. O facto de continuarmos a ter Urgências com uma amálgama de doentes de gravidade diversa, em que menos de 10% tiveram observação prévia no Centro de Saúde, torna o cansaço ainda maior. Quando não sentimos o nosso trabalho como uma mais valia, o burnout atinge-nos sem piedade. Depois, a atividade assistencial dos Serviços de MI é considerada fundamental, mas os elogios não se materializam em mais nada do que algumas palmas, como aconteceu na pandemia covid-19. Com ou sem pandemia, pelo menos nos 4 meses de Inverno, os Serviços de Medicina Interna aumentam a sua lotação em mais 30% de camas, mas nunca ninguém se lembrou que isso deveria ser contabilizado como produção adicional, que se devia repercutir no salário dos Internistas.

As cirurgias realizadas fora do horário normal de trabalho, para recuperação das listas de espera, são pagas a toda a equipa. Aos Internistas, se em vez de 10 têm de observar e tratar 20 doentes, o tempo extra gasto não é pago, como se ele não existisse, e se pudesse fazer o dobro no mesmo horário, por algum passe de magia. Os obstáculos que referi para a escolha da MI pelos jovens médicos, obrigam a que só persista a vontade quando há uma forte convicção, e até uma certa apetência pelo sacrifício, que ironicamente eu chamo de atração pelo abismo. Mas, como os problemas são similares em todo o país, devemos interrogarmo-nos acerca das razões pelas quais 53 (76,8%) das 69 vagas de MI não ocupadas, são em grandes hospitais do Sul, com clara relevância da região de Lisboa e Vale do Tejo.

O que há aqui de diferente? Das informações que tenho de fonte segura, os Serviços de MI dos hospitais de Lisboa e arredores, têm sido esvaziados dos especialistas de MI de maior valor e dos recém especialistas mais bem classificados, que não resistem às condições incomparáveis que lhes são oferecidas no setor privado. O Hospital Privado de hoje, não tem qualquer comparação com o que era no passado. Diagnostica e trata doentes muito complexos, pelo menos até ser atingido o budget permitido pelo seguro ou pelo subsistema de saúde. Porque são bem geridos, há muito que reconheceram nos Internistas a capacidade de serem eficientes, garantindo cuidados de alta qualidade e segurança, com o menor custo. Por isso, sempre bem informados, vão desnatando os Serviços de Medicina Interna do Hospitais Públicos, seduzindo os melhores especialistas do quadro e os jovens recém-especialistas, amputando-os de qualquer esperança de renovação. Acontece que estes Internistas que saem, são também excelentes Orientadores de Formação, e os Serviços ficam a pisar o risco para obterem a idoneidade formativa pela Ordem dos Médicos. Ainda se abrem vagas nesses Serviços, mas a informação circula, e o Interno fogem a sete pés. Neste momento, o problema assume maiores proporções na região de Lisboa, em que a pressão dos privados é maior. Mas, se não houver medidas de fundo, acontecerá o mesmo no resto do país.

O SNS tem de reinventar as carreiras médicas e tornar as grelhas salariais competitivas com o setor privado. Haverá sempre quem mantenha uma espécie de espírito de missão e aceite ganhar menos, por não ser esse o seu ideário de vida. Mas, é aviltante vermos alguém na mesma fase da vida profissional, ganhar o dobro ou o triplo. Se a sangria de Internistas não pára, e começa a ser posta em causa a idoneidade formativa em MI num número significativo de hospitais, o SNS atingirá um ponto perigoso de não retorno. Espero que não cheguemos lá!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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