Saber dar tiros no pé não é para qualquer um

Economicamente, a limitação das rendas numa percentagem abaixo da inflação esperada atinge o objetivo oposto a que o Governo se propunha.

(Declaração de interesses: não sou inquilino nem sou senhorio. Sou, apenas, proprietário da minha habitação.)

O Governo está preocupado com a inflação que continua a aumentar. Governos e bancos centrais já estarão convencidos que a inflação não é um fenómeno temporário (como parece não o ser a invasão da Ucrânia). Como samaritano das boas causas sociais e ator diligente em favor dos desvalidos (apesar de já não ter a “geringonça” à perna), o Governo distribuiu 125 euros pelos cidadãos que estão abaixo da classe média-alta e jurou tributar os lucros excessivos das petrolíferas e dos grandes hipermercados. A mais recente medida no pacote anti-inflacionista foi uma lei que limita a 2% a subida anual das rendas dos contratos de arrendamento.

O Governo, possivelmente preso numa esquizofrenia ideológica – acossado às esquerdas, que o acusam de fazer concessões aos interesses do grande capital; e perseguido pelas direitas, que o empurram para um socialismo que abjuram –, parece sitiado pela desorientação. Não faço o inventário dos inúmeros micro episódios que, todos somados, dão um bom enredo de desnorte de um Governo que nem parece saber tirar partido de uma maioria absoluta (ou talvez por isso mesmo). Limito-me à análise da lei que impõe o limite de 2% ao aumento anual das rendas.

Politicamente, dir-se-ia que é compreensível que um governo – como dizê-lo? socialista – mostre sensibilidade pelos mais desfavorecidos. É dos manuais: quando a inflação sobe duradouramente e ultrapassa os piores cenários projetados, os mais pobres são os mais penalizados. Os mais pobres não têm condições financeiras para serem proprietários das casas que habitam. Sobra a opção do arrendamento. Politicamente, repito, fará sentido acautelar os interesses dos mais pobres protegendo-os de uma subida das rendas que acompanhe a taxa de inflação prevista. Se eles são os mais sacrificados pela espiral de preços noutras categorias de bens essenciais (alimentação, vestuário, transporte), não devem ser mais onerados com a previsível atualização das rendas em linha com a inflação. Com a limitação das rendas a uma percentagem bem abaixo da inflação prevista, o Governo coloca-se ao lado das camadas mais desfavorecidas da população. Mostra uma elevada sensibilidade social.

Todavia, a política não deve andar desencontrada da economia (como a economia não se deve ensimesmar, deixando de dialogar com as outras ciências sociais). Economicamente, a limitação das rendas numa percentagem abaixo da inflação esperada atinge o objetivo oposto a que o Governo se propunha. Não discuto se é aceitável que os proprietários sejam penalizados por as rendas que cobram não poderem acompanhar a inflação; para o bom socialista, esse é um não-tema, pois os senhorios usufruem de boas condições económicas e podem suportar um sacrifício temporário, aceitando uma partilha de riscos própria do momento inflacionista, manifestando uma louvável solidariedade intracomunitária. Se o impulso não vier da iniciativa dos senhorios, já que o ministro da tutela, não conseguindo contrariar o Estado de direito, não é capaz de nacionalizar a vontade dos senhorios, o Governo trata de o impor por via de lei. As paredes nos idos de 75 já o anunciavam profusamente: “Os ricos que paguem a crise.”

Em vez de discutir a legitimidade política e a ética de imposições governamentais, é mais útil avivar os efeitos previsíveis da medida que estão a ser confirmados pelos factos. Há senhorios que, não convencidos com a retórica socialista da distribuição equitativa dos custos da inflação (pese embora o Estado seja o primeiro a violar este imperativo categórico ao não aceitar uma devolução generosa dos proveitos excessivos que arrecadou com a inflação elevada), não renovam contratos que caducam e só aceitam realizar novos contratos com rendas que são, em média, 10% mais elevadas. O próprio presidente da Associação dos Proprietários o admitiu num canal televisivo.

O excesso de voluntarismo nunca foi bom conselheiro de nada, o que inclui a governação e a feitura de políticas públicas. No afã de mostrar serviço a favor dos mais expostos à mordedura da inflação, o Governo quis restringir o aumento das rendas a 2%. Colocou-se ao lado dos inquilinos, a parte mais fraca. Não contemplou a hipótese de haver senhorios que também não querem ser vítimas da inflação. O Governo ficará para os anais como aquele que, de tanto querer proteger os mais expostos aos danos da inflação, acabou por os colocar ainda mais à mercê da cavalgada intempestiva dos preços que não cessam de crescer. É arriscado fazer História contrafactual, mas apetece perguntar, com a necessária dose de especulação à mistura, se o Governo não tivesse sido atraiçoado pelo excesso de voluntarismo, em que situação ficariam os inquilinos: estariam a pagar rendas 10% mais caras?

Na economia e na ciência política usa-se frequentemente a retórica das falhas do mercado como pretexto para a intervenção corretiva do Estado. Desta vez, o Governo interveio para corrigir uma falha do mercado pressentida. A intervenção do Governo acabará por gerar uma falha do mercado ainda maior do que a pressentida. A verdadeira falha foi do Governo. Quem não sabe usar a artilharia, desata a dar tiros nos pés.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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