O guarda-chuva

Ponho-me no coração dos outros como se lhes calçasse os sapatos.

Ponho-me no coração dos outros como se lhes calçasse os sapatos.

As pessoas com expectativas elaboradas querem alguém que seja bonito por fora, ou que use um biquíni no Verão, e que, de preferência, não chore no Inverno. Muitas das pessoas que conheço permanecem sozinhas porque nunca se permitiram a abrir o guarda-chuva sem escolher a quem querer dar abrigo. E, sem rodeios, a chuva quando cai, é para todos. É magnífico decidirmos abrigar sem perguntas e ouvir um “abrigada” ou “obrigada” sem distinção.

Fui muitas vezes rejeitada. Muitas, mesmo. Não era magra nem gorda. Fui uma assim-assim, sem perceber, durante anos, que isso era um entrave. Até que um dia, um rapaz me disse que caía sistematicamente em tentação por uma rapariga porque ela era “magra” – como se isso dissesse que ela era especial. Que o carácter dela era à prova de bala. Que ele a havia de amar sempre porque ela era aquela. Mas não. Era magra. Eu sempre fui assim-assim. Gosto deste meio-termo. Atraio o joio e descarto-o com facilidade. A futilidade das pessoas (que não vem de agora) leva-me a pensar bem no tamanho do guarda-chuva: eu abrigo sem ser obrigada, mas tantas vezes fui rejeitada.

As pessoas acham mesmo que o amor é algo que escolhe apelidos, corpos, beleza, fortunas, quando a maior riqueza do amor é alguém calhar-nos em frente dos olhos sem que tenhamos de lhe fazer perguntas.

Mas, sim, confesso que lidei com gente que merecia pouco, e tive a sorte de nunca usar o verbo amar em vão. Isso não me livrou de sofrer o que sofri de cada vez que o esboço de uma relação se desenhou. Era nada.

Somos empurrados para uma ilusão porque a queremos viver. Depois desaparece como o pó das nossas mãos. É tão insuficiente, que nos assusta termos sido as pessoas que se permitiram a tão pouco.

O mais curioso é que nem importa a idade (como se ela provasse alguma coisa ao longo do tempo) nem importa o quanto achamos já saber.

Erraremos de forma certeira como todas as manhãs se erguerão imponentes para que as possamos viver mesmo que a rota se torne inviável.

Demora muito até encontrarmos a pessoa que nos ama olhando para dentro. Ou, então, não demora nada, porque os primeiros amores, às vezes, vêm com supercola. Amamo-nos nas nossas afinidades e nos nossos desejos. Amamo-nos porque somos o conforto mútuo. Ser a capa de chuva do outro e sentirmo-nos abrigados levam a um agradecimento para a vida. Confundimos, com alegria, o abrigada com o obrigada.

As chuvas nunca faltarão e o amor, esse abrigo, ficará connosco. Por isso deixem lá o tamanho, o apelido, a família. Será que as pessoas percebem que o amor nada tem que ver com isto?! Acho que não. Continuaremos a escolher guarda-chuvas de maneira a abrigar os que nele cabem.

Ponho-me no coração dos outros como se lhes calçasse os sapatos. Lamento que ainda tenhamos a tentação de ser sectários como se do amor fizéssemos o clube, o partido, a agregação esporádica.

O amor é muito mais do que isso. É a coisa mais séria. Não vamos ter filhos de alguém porque gostamos de ver essa pessoa em biquíni ou em fato de banho, com bíceps ou na balança das calorias. E podemos não ter filhos, mas ter o desejo de amar esse alguém para sempre. E no “para sempre” não cabem, de forma alguma, músculos. Só o maior de todos, chamado coração.

Não sejam tolos. Dêem ao amor a importância que ele ainda tem. Sermos assim-assim, mas muito inteiros por dentro, vale-nos a maior garantia de todas. As pessoas realmente valem pelo são intimamente.

Basta lembrar que um dia morremos e o biquíni nunca fez parte da equação. O coração que o diga.

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