Poucas deslocações de um Presidente da República ao estrangeiro suscitaram tanto debate e, na Assembleia da República, tantos votos contra como a viagem de Marcelo Rebelo de Sousa ao Qatar, onde assiste à estreia de Portugal no Mundial de Futebol de 2022

Não só Marcelo, mas também o primeiro-ministro, António Costa, e o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, também presentes no Qatar, sublinham que se trata apenas de uma demonstração de apoio à selecção portuguesa de futebol (algo que não é inédito) e não ao regime de Doha.

No entanto, vozes de diversos partidos (BE, IL, PAN, Livre e alguns sectores do PS e do PSD) criticam a deslocação ao Qatar, país de parcas credenciais no capítulo dos direitos humanos e políticos. O que motiva a interrogação: pode o chefe de Estado viajar aonde quiser? Quem tem algo a dizer sobre o assunto?

Os deputados Eurico Brilhante Dias (PS) e Tiago Moreira de Sá (PSD) argumentam que as viagens de um Presidente pertencem ao foro da sua "agenda política" e das suas "opções políticas" em matéria de relações internacionais, um campo onde um Presidente da República tem bastante amplitude de acção. No entanto, a Constituição é clara ao dizer que a Assembleia da República tem voto na matéria. Perguntas e respostas para perceber o tema:

Mas porque é que a Assembleia da República tem alguma palavra a dizer sobre as viagens do Presidente?

O Presidente da República está obrigado a ter a autorização da Assembleia da República para se deslocar ao estrangeiro. Está na Constituição, no artigo 129.º: "O Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, se aquela não estiver em funcionamento". É mais um exemplo do equilíbrio ou interdependência entre os diferentes órgãos de soberania no regime português.

No caso da deslocação ao Qatar, a viagem foi aprovada com votos a favor do PS, PSD e PCP e votos contra da IL, BE, PAN, Livre e dos deputados do PS Isabel Moreira, Alexandra Leitão, Carla Miranda e Pedro Delgado Alves. O Chega absteve-se, assim como três deputados do PSD (Hugo Carneiro, António Topa Gomes e Fátima Ramos) e três do PS (Maria João Castro, Miguel Rodrigues e Eduardo Alves).

E se o Presidente viajasse sem autorização do Parlamento?

Habilitar-se-ia a um castigo pesado, igualmente expresso na Constituição: "a perda do cargo".

Há excepções em que um Presidente não precisa da autorização da Assembleia da República?

A Constituição dispensa autorização "nos casos de passagem em trânsito ou de viagem sem carácter oficial de duração não superior a cinco dias, devendo, porém, o Presidente da República dar prévio conhecimento delas à Assembleia da República".

A interpretação desta norma constitucional é matéria de debate, e já motivou decisões diferentes por parte dos Presidentes

Recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se a Angola, para o funeral de José Eduardo dos Santos, sem esperar pela autorização da Assembleia da República. Deu conhecimento prévio ao Parlamento a 23 de Agosto, quando os deputados estavam de férias, e só recebeu aprovação já depois de ter regressado de Angola a 7 de Setembro. Mas terá tido a anuência do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, que consultou os vários líderes parlamentares e deputados únicos, e que sublinhou a excepcionalidade do motivo da viagem.

Já em 1999, e em circunstâncias idênticas (a morte do Rei Hussein da Jordânia), o então Presidente da República, Jorge Sampaio, decidiu não ir ao funeral em Amã por não ter recebido autorização do Parlamento em tempo útil, apesar de o então presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, lhe ter dito que não seria levantado qualquer problema. Sampaio não arriscou.

O antecessor, Mário Soares, fez diversas viagens que só depois foram formalmente autorizadas pelo Parlamento.

A Assembleia da República já impediu alguma vez um Presidente de viajar?

Não. Todas as viagens foram aprovadas, a maioria por unanimidade. 

Por vezes, há votos contra, mas sempre em minoria. Foi o caso recente da aprovação de duas deslocações de Marcelo Rebelo de Sousa a Angola: a primeira foi a referida viagem por ocasião do funeral do ex-Presidente José Eduardo dos Santos (votos contra do Bloco de Esquerda e da Iniciativa Liberal), e a segunda para a tomada de posse de João Lourenço (votos contra da Iniciativa Liberal e do Chega).

Em suma, um Presidente da República está de facto dependente da autorização da Assembleia da República para se deslocar ao estrangeiro. No entanto, os dois partidos que historicamente têm o maior número de assentos no Parlamento entendem que as viagens do chefe de Estado são uma matéria da agenda política própria do Presidente em que a Assembleia da República não deve interferir. 

As deslocações presidenciais a países com problemas de direitos humanos continuarão a dividir opiniões, mas a tradição política portuguesa tem sido a de conceder uma carta branca ao chefe de Estado.