O chapéu tingido

Acabo de concluir que é isso que a natureza me traz: esperança. Uma força bruta de querer viver independentemente das circunstâncias.

O carro segue rente à linha branca pintada ao longo do alcatrão. Já houve tempos em que uma linha recta sem fim à vista me podia trazer ansiedade. Agora, não. Somos outros quando já não perguntamos: quando é que chegamos? Quanto tempo demora?

Ainda me lembro de ouvir a minha filha, repetidamente, fazer essas perguntas. Acho que nunca as fiz, mas sentia a lentidão do tempo e apressava-me a querer viver velozmente. Agora foi o tempo rápido, mais veloz do que nunca, a apanhar-nos. Há muito que esse tempo se tornou vertiginoso. Vamos cheios de pressa a lado nenhum. Por isso, faço com agrado a viagem junto à linha branca. Um guia para não deslizarmos.

Da janela embaciada, onde a minha respiração desenha palavras imaginárias, avisto a natureza que rebenta em força. Um ciclo novo que nos lembra a teimosia de vingar. Passamos a vida a ir abaixo e a vir à superfície. E a tantos, tantas vezes, falta a força de voltar a respirar o ar pesado. Não me lembro de em miúda ficar tão fascinada com a natureza como agora.

Íamos em rituais de estação apanhar girinos aos regatos transparentes. A água corria com tanta força, e entre as chuvas atirávamos as pedrinhas que replicavam o primeiro estremeção na água. Depois era o tempo dos grilos, a gaiola de plástico que talvez se comprasse na feira. A alface enfiada como combustível para o canto aprisionado. Quando íamos para a praia (a minha infância foi toda a pé), eu fixava o vento forte a assobiar nos canaviais, mas não sabia processar tudo o que via. Apenas acumulei informação que agora me traz conforto. O mesmo que me permite olhar pela janela embaciada que a manga preta de lã limpa admirando esta lição da natureza. Quando já não estivermos cá, ela continuará a insistir em crescer. Teríamos muito a aprender no convívio de mais perto com a terra. Porque a natureza nos dá grandes recados lembrando-nos de que somos dispensáveis, até pela forma como teimamos em tratá-la.

A janela outra vez: são milhares os pinheiros que rebentam fortes com as chuvas do Outono. No Verão voltaremos a ouvir falar de “mão humana” no extermínio do que mais belo nos rodeia. Então sinto aquela aflição repetida de pensar que a natureza precisará novamente de força para vingar. Projecto-me nela. Lembro-me de quantas vezes podemos recomeçar? Até quando?

A janela embaciada tem outra vez imagens espelhadas da minha infância: a minha memória vai toda lá parar, como se tivesse saudades do que fui, mas é um engano. Prefiro-me consciente do que me rodeia, mesmo que tantas vezes a lucidez nos vinque as dores.

Nas últimas semanas, não paro de observar o voo dos pássaros. Bandos de asas orquestrados que me devolvem uma ideia qualquer de esperança. Acabo de concluir que é isso que a natureza me traz: esperança. Uma força bruta de querer viver independentemente das circunstâncias. Do sol. Do solo.

Agora mesmo, junto do traço longo branco, uma extensão infinita de cor salpica as árvores de folhas cheias de gotas grossas de chuva. Eu sei que as pessoas são felizes no calor, mas quando é que eu expandia a minha melancolia se não fosse agora?

O meu pai levava-me de chapéu de palha a apanhar amoras e eu voltava com o chapéu cheio, manchado, mas com as mãos a mostrarem tanta felicidade, até porque, dias depois, tudo teria brotado de novo e o chapéu tingido voltaria a dar abrigo aos frutos, às flores, aos pinhões, dos quais sinto o cheiro da resina fresca até agora, ou os cogumelos que seduziam a terra húmida multiplicando-se. Foi preciso ser crescida para perceber como amo a natureza e como as lições de vida que ela nos dá não chegam a todos.

De cada vez que uma flor nasce sem água, lembro-me de que teimarei em continuar.

(A viagem segue sem que eu nunca pergunte: quando é que chegamos?)

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