No dia da morte de Joaquim Machado de Castro

O mais importante escultor barroco português morreu há 200 anos – oportunidade para evocar um escultor de obras-primas.

O escultor Joaquim Machado de Castro morreu há 200 anos. A certidão de óbito indica o dia 18 de novembro de 1822. O auto de abertura do testamento data da véspera. A vida do mais importante escultor barroco português conta-se em duas metades. Até 1770, parece ter sido um discreto colaborador de artistas com maior estatuto, aprendiz na sombra entre Coimbra, Lisboa e Mafra. Nesta última vila, ingressou em 1756 na Escola de Escultura liderada pelo italiano Alessandro Giusti. Depois de 1770, foi o escultor da família real, aquele que concebeu e materializou as obras celebrativas dos reis reconstrutores de Lisboa (destruída pelo terramoto de 1755), e aquele que concentrou maior número de encomendas prestigiantes, às quais associou muitas vezes os seus próprios colaboradores.

1770 foi o ano em que o rei D. José I e o Marquês de Pombal atribuíram a Machado de Castro a tarefa de desenvolver a monumental estátua equestre, para imortalizar o monarca no novo Terreiro do Paço. O projeto mudou a vida do escultor. E o escultor mudou a face da capital. Ainda se reconstruía a Baixa da cidade quando a intervenção de Machado de Castro dotou a capital de um símbolo maior – a estátua ao rei reconstrutor, memória para a eternidade de um tempo de ressurgimento, em que a cidade se reerguia, de forma moderna e monumental, como nunca fora antigamente. Ao invés de um Terreiro do Paço irregular e isolado do rio por muralhas, a principal praça de Lisboa – é-o ainda hoje – foi desenhada como sólida jangada avançada sobre o Tejo. E, no seu centro, foi colocada a imagem de um monarca absoluto recebendo todos aqueles que chegavam a Lisboa pelo rio, forma mais natural de se alcançar a cidade até ao século XIX.

O projeto teve muitas peripécias, histórias paralelas, curiosidades e até mitos: o modelo prévio, equestre, atribuído a Eugénio dos Santos com que o escultor teve de se conformar; os cinco anos que levou a fazer quase tudo, mesmo com um conjunto alargado de ajudantes; as tentativas do escultor para que o rei posasse para ele, e, na impossibilidade de aceder à figura régia, ter decidido dar às mãos do monarca a forma exata das suas próprias mãos de escultor; o sucesso que representou a fundição de uma estátua assim colossal em apenas oito minutos; a ausência do autor na inauguração da sua obra, ao que tudo indica por equívoco de protocolo. Depois da inauguração, ocorrida a 6 de junho de 1775, sem o escultor e sem o rei, com o palco todo ocupado pelo Marquês de Pombal, Machado de Castro ainda terminou o baixo-relevo da cartela traseira do monumento, a única parcela que evocava a intervenção do monarca para a reconstrução da capital.

Depois do Monumento a D. José, o escultor fez muitos outros trabalhos. A fama e a glória alcançadas com esta obra projetaram-no para uma carreira fulgurante. Fundou o Laboratorio de Escultura, aula onde os seus colaboradores laboravam e na qual desenvolveu métodos inovadores e rigorosos de aprendizagem e de trabalho coletivo, que lhe permitiram acolher várias encomendas em simultâneo e desenvolvê-las com escultores próximos. Monumentalizou a Basílica da Estrela com estátuas alegóricas às virtudes régias de D. Maria I e aprimorou a graciosidade dos presépios com que presenteou a rainha. Deu vigor e intensidade ao Neptuno do Chafariz do Loreto (hoje deslocado e incompreendido no centro do Largo D. Estefânia), conferiu serena solenidade à imagem de altar da igreja de Nossa Senhora da Encarnação e ainda planeou o programa decorativo para o átrio nascente (o único a ser construído) do Palácio Nacional da Ajuda. Para este último espaço, assinou, em 1817, três estátuas sem rasgo, conformadas massas de pedra que constituem o epílogo improvável (e desnecessário) de uma carreira cheia.

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Alegoria aos “povos submetidos”. Pormenor do Monumento a D. José. Lisboa, Praça do Comércio (1770-1775) José Avelar/Museu de Lisboa

No dia da morte de Joaquim Machado de Castro, podia ficar parado diante da afetividade da imagem de Santa Ana ensinando a Virgem Maria a ler, que o escultor realizou para o antigo convento de Arroios (hoje na exposição permanente do Museu Nacional de Arte Antiga), ou do virtuosismo das vestes reais da Estátua de D. Maria I que se encontra na Biblioteca Nacional de Lisboa.

Mas, neste dia, a imagem que gostaria de preservar saída das mãos deste grande escultor é a ânsia e o desespero com que caracterizou os povos submetidos do império português nos grupos laterais da estátua equestre. É preciso entender estas obras à luz da época, em vez de aplicar uma escala interpretativa contemporânea a um conjunto realizado há 250 anos. Para afirmar o carácter absoluto da governação do rei D. José, Machado de Castro representou duas figuras masculinas – alegoria dos povos do império – a serem submetidas por um cavalo e por um elefante, sendo estes, por sua vez, conduzidos por outras representações alegóricas da Fama e do Triunfo. As figuras masculinas contorcem-se à passagem dos animais, tentam proteger-se com um braço, esquivar-se através de movimentos repentinos dos corpos, para perceberem afinal que não há fuga possível, aprisionados que estão por correntes. Os dedos das mãos foram parcialmente amputados em datas recentes, frágeis permanências subtraídas por vandalismo sem critério ou propósito. O rigor anatómico surpreende pela forma agitada em que os corpos se encontram, mas é nas faces, no retrato psicológico de figuras sujeitas a um profundo sofrimento, que Machado de Castro melhor revelou o seu génio. Quando a estátua equestre foi realizada, o tema dos “povos submetidos” era já antiquado na estatuária comemorativa real europeia, e o escultor sabia-o bem. Mas tal circunstância não interessa, quando colocados diante do lancinante grito inaudível que intuímos ser emitido por estas figuras prostradas. Aqui, o que interessa é somente a qualidade do trabalho de Machado de Castro, escultor de obras-primas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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