In memoriam de Paulo Cunha e Silva

Uma pessoa que praticou com a maior das incontinências intelectuais a invenção disciplinar em torno do desporto. Que aboliu e ultrapassou fronteiras de forma inteligente. Que baralhou conceitos e teses de modo brilhante. Que o fez de uma forma profunda e ao mesmo tempo lúdica. Essa pessoa foi o Paulo Cunha e Silva.

Formado em medicina pelo ICBAS, onde veio a ser assistente do professor Nuno Grande, na cadeira de Anatomia, Paulo Cunha e Silva viajou através do corpo e para além dele, real e metaforicamente, intelectual e culturalmente. Ainda muito novo, percebeu que o conhecimento se encontra no espaço de fronteira entre os diversos saberes. A sua visão tornou-se tão profícua e contagiante que não tardou a ser-lhe confiada a tarefa de organizador e curador de vários debates e exposições, nomeadamente na Fundação de Serralves ou na Fundição de Oeiras, com o projecto Anatomias Contemporâneas, nos quais congregou em torno de um tema o olhar de distintos especialistas e pensadores, provenientes dos mais distintos campos de laboração e reflexão científica e intelectual.

Estas iniciativas não apenas obtiveram um notório êxito e encontraram reconhecimento, eco e correspondência no público como inauguraram um caminho que doravante viria a ser percorrido por outros actores do cenário cultural. Deste modo, ele foi um precursor e inaugurador de vias de abordagem e de epistemologia que, graças à sua clarividência, se tornaram imprescindíveis e normais.

Há um antes e um depois do papel visionário de Paulo Cunha e Silva. O antes era o fechamento e acantonamento de cada especialidade dentro do seu espaço restrito. O depois é o abater de barreiras, o ver o local sem grades e paredes, o iluminar e perceber o particular à luz de critérios gerais, abrangentes e universais, a tentativa de conformar cada parcela às bitolas da totalidade e de concretizar esta nas suas partes constituintes.

Passa despercebido de muitos o facto de ter realizado a carreira académica na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e de aí ter elaborado os conceitos e teses que lhe granjearam elevada consideração. Ele também não era cioso de trazer à colação essa circunstância, talvez porque considerasse que isso não se coadunava com o seu exercício de demolidor das demarcações das áreas e das fronteiras disciplinares.

Com a incontinência específica do intelecto acordado e diligente, percebeu e afirmou o fenómeno desportivo como locus fronteiriço dos mais diversos saberes e visões. Como uma cartografia de vias axiológicas e estéticas onde os corpos se transcendem e tornam protagonistas de vidas concebidas como projectos de arte.

Para tanto Paulo Cunha e Silva convocou e amalgamou, de forma lúcida, profunda e brilhante, conhecimentos provenientes de fontes aparentemente divergentes. Nele se exprimiu, de modo firme e livre de estigmas e preconceitos bolorentos, a aceitação das práticas desportivas como uma manifestação artística e ficcional, tributária da ‘arété’ e paideia gregas. Mais, ele percebeu que o homo sportivus não é apenas uma máquina ou uma existência biológica, mas um ser ética e socialmente construído. Ou seja, o desporto não é explicável apenas pelo recurso à biomecânica ou à fisiologia, mas carece para a sua exacta compreensão de uma visão holística de saberes disciplinares tão distintos como a antropologia, a história, a psicologia, a sociologia ou a filosofia.

Era um homem inquieto, um cultor da aventura do pensamento que ele percorria com uma imaginação e uma alegria incontidas e contagiáveis. Nele parecia não haver tempos mortos, a sua cabeça fervilhava de ideias e, qualquer conversa, era pretexto para a interrogação, o desafio, a inovação, a provocação.

Nesta conformidade, é lícito sustentar que Paulo Cunha e Silva foi uma criatura genial e radical, transcendente e transgressora, um ser que excedeu a medida encontrada, provocou roturas, abriu e balizou caminhos conducentes para além do seu tempo. Em vez de se conformar a noções instaladas e tradicionais, trocou as perguntas e encontrou as respostas que parecem óbvias depois de serem formuladas e apresentadas.

Recordá-lo nesta data, quando passam sete anos sobre o seu falecimento, é lembrar alguém que desafiou de modo assaz inovador a quietude dos conceitos disciplinares e que deixou um legado merecedor de admiração e continuidade.

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