O Brasil e as inquietações pela democracia
Esteve e está em jogo um combate para evitar uma regressão dos valores da democracia, algo sempre confrangedor num país irmão e certamente com repercussões nos extremismos a nível internacional.
As eleições presidenciais no Brasil foram seguidas em Portugal com muito entusiasmo e mesmo com muita paixão. São vários os fatores que o explicam, como o facto de os brasileiros serem a maior comunidade estrangeira em Portugal ou os laços históricos e o afeto profundos que ligam os dois povos.
Mas talvez a razão mais relevante seja porque nestas eleições esteve e está em jogo um verdadeiro combate para evitar uma regressão dos valores da democracia, algo sempre confrangedor num país irmão e certamente com repercussões nos extremismos a nível internacional.
Toda a campanha se desenrolou num ambiente demasiado radicalizado e antagónico, rachando literalmente o país ao meio e criando uma tensão permanente, que continua após a vitória de Lula da Silva.
Tanto no caso de Lula como de Bolsonaro, a rejeição radical do outro foi muito violenta, com discursos de ódio e acusações constantes que em nada honram a democracia, tendo as pessoas sido mobilizadas como se estivessem em estado de guerra. As acusações e insinuações relativamente a vários domínios de intervenção pública estiveram omnipresentes, o que acabou por distorcer o debate claro e concreto sobre as propostas para responder às necessidades económicos e sociais das pessoas.
O que não deixa de ser surpreendente, é que, mais uma vez, a alteração do sistema político esteve fora do debate. E quando não se quer tocar num sistema que potencia a corrupção e um sistema de privilégios muito assimétrico relativamente à vida da maioria dos brasileiros, dificilmente poderão também ser combatidos aqueles flagelos, que estarão sempre na origem de um mal-estar e ressentimento na sociedade e num confronto de fações.
Independentemente desta questão central, é uma evidência que Lula e Bolsonaro têm visões completamente antagónicas sobre o que querem para o Brasil. Enquanto Lula tem uma agenda social clara de combate à pobreza e de valorização da educação e da cultura, de inclusão das minorias, de proteção do ambiente, de participação nas instituições multilaterais e de cooperação externa, incluindo na CPLP e na relação com Portugal, Bolsonaro tem uma visão completamente oposta.
Bolsonaro demonstrou várias vezes indiferença pelas pessoas, como ocorreu durante a pandemia, que teve proporções catastróficas no Brasil, com quase 700 mil mortes e mais de 34 milhões de infetados, um dos temas fortes da campanha, ou o desprezo que nunca escondeu pelas minorias, as ofensas imperdoáveis às mulheres, o condicionamento da imprensa e a propagação maciça de desinformação, o desinteresse pelas instituições multilaterais e pela política internacional, o ataque às instituições do Estado e o elogio obsceno da ditadura e da tortura ou toda a ação para facilitar o acesso às armas, que inclusivamente legitimou que uma sua candidata perseguisse um jornalista de arma em punho.
Por isso, um segundo mandato de Bolsonaro poderia ser fatal para a democracia, porque teria assim o tempo que agora lhe faltou para colocar o Estado e as suas instituições ao serviço dos seus propósitos antidemocráticos, discriminatórios e persecutórios. A democracia estaria, por isso, em risco.
Bolsonaro acabou por aceitar a derrota com muita relutância e mau perder, com uma declaração tardia e muito ambígua, enquanto entre as suas hostes na rua houvesse quem a interpretasse como um apelo à luta ou mesmo que fizesse a defesa de um golpe militar para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, como se isso fosse uma coisa normal da democracia.
Apesar de os protestos pela derrota de Bolsonaro terem acalmado, o ressentimento dos bolsonaristas, tal como aconteceu em relação a Donald Trump, continua à flor da pele e pode contribuir para deixar o Brasil ingovernável, o que continua a gerar preocupação pelo destino da democracia no país.
Seja como for e esperando que a situação normalize, a grande tarefa de Lula da Silva é unir o país, esvaziar o ressentimento e trazer a paz e o progresso a todos os brasileiros. Não será fácil, mas é absolutamente necessário.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico