Uma escola reabriu no Alentejo. Em Cabrela, escreveu-se o mais bonito dos poemas

A reabertura de uma escola primária numa vila do interior do país, permitindo que as crianças da terra estudem próximo de casa, será sempre um projeto que diz respeito a toda a gente.

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A escola primária de Cabrela reabriu no dia 24 de outubro, depois de oito anos encerrada Cortesia Junta de Freguesia de Cabrela

Enquanto espécie, em termos genéricos, estamos sempre focados no progresso e agitamo-nos continuamente na busca de uma condição melhor do que a atual. Mais dinheiro, mais edifícios, mais veículos, mais estradas, mais aviões, mais barcos, mais estádios, mais universidades, mais, mais, mais…

Nada tenho contra o progresso. Prefiro-o sustentável, naturalmente, mas não defendo que “antigamente é que era”, “porque antigamente não havia crime nem desemprego” e “porque antigamente íamos a pé para todo o lado e por isso não havia poluição” e “porque antigamente a comida não tinha químicos como agora e com pouco dinheiro comprávamos muito mais”.

Para cada uma das frases anteriores (cuja veracidade não questiono, pelo menos em termos conceptuais), as quais já ouvi por mais de uma vez da boca de pessoas jovens e menos jovens, mais ou menos pobres, mais ou menos ricas, mais ou menos saudáveis, há outras frases para contrapor: “antigamente as pessoas morriam como tordos por não existirem cuidados médicos suficientes e de qualidade, porque não havia tantos e tão bons medicamentos como agora”, “antigamente, a taxa de analfabetismo era gigantesca”, “antigamente, havia muita gente sem nada para comer” ou “antigamente, as pessoas tinham de esconder a sua sexualidade e cor política e as mulheres gramavam uma vida inteira de pancada emudecidas pelo medo e por não terem a quem se queixar”.

“(…) a minha conclusão é de que os velhos de todos os países do mundo têm o mesmo discurso, numa palavra que o homem que avança na idade parece ter sempre propensão para acreditar que o antigo era, em todos os aspetos, preferível ao recente. Os velhos de há cem anos lamentavam os tempos de há dois séculos, e os velhos de há duzentos anos suspiravam pelos bons tempos de há três séculos: nada nos leva a crer que um velho qualquer tenha alguma vez declarado a sua satisfação pelo estado de coisas no seu tempo próprio; contudo, nunca esta constatação foi tão verdadeira como no momento atual (…)”

As palavras acima são de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um dos mais importantes escritores japoneses de sempre, no seu maravilhoso Elogio da Sombra (ed. Relógio D'Água) de 1933. Podiam ter sido escritas ontem.

Vejamos: entre o bom e o mau de antigamente e o bom e o mau do presente, fico-me pelo meio-termo. Juntássemos passado e presente (inclino-me para uma percentagem maior de presente…) e ficaríamos bastante melhor agora e com perspetivas de um futuro radioso. Mas isso são lirismos em que penso antes de dormir. O realismo é o caminho do despertar. E, olhando para a realidade com realismo, passe o trocadilho forçado, não me parece que o equilíbrio tenha viabilidade no mundo frenético do efémero e da busca doentia pela novidade.

Há tempos, um amigo que é dono de uma agência de publicidade confessava-me a frustração pelo tipo de serviços que atualmente os clientes mais procuram: “Querem publicações para as redes sociais, João, uma por dia. É ingrato. Um trabalho demora uns dias a fazer, depois é publicado e o tempo útil de vida são 24 horas porque a seguir entra outra publicação e aquela passa à história. É frustrante trabalhar assim. Ninguém dá valor a coisa nenhuma, é tudo a correr”.

Forçando um paralelo, argumentei que por essas e por outras é que é uma tolice espantarmo-nos com a baixíssima taxa de leitura em Portugal. Ler exige tempo. E não há uma novidade relevante em cada página, pelo que é difícil cativar os sedentos da variedade galopante.

E com tudo isto se cultiva a dependência do novo, daquilo que de novo surge do exterior de nós, o desejo de imitar, tanto a nível superficial quanto comportamental, alimentando a ânsia de ser igual ao outro, a comparação, a reação ao invés da criação, afastando-nos do autoconhecimento, a única forma de nos libertarmos dos padrões estabelecidos e de ganharmos a independência do pensamento e da análise. Reflexão.

Só através da reflexão e da compreensão de si mesmo pode desencadear-se a liberdade de pensamento que nos permitirá abrandar o progresso automático, doido e desgovernado que leva a eito a substituição sem critério do passado. Equilíbrio, o progresso deve começar e gerir-se pelo equilíbrio.

Quase todos os dias, passo em frente à minha escola primária, onde aprimorei a leitura e a escrita. Já conhecia a maioria das letras e escrevia corretamente o meu nome todo quando para entrei para a 1.ª classe (agora chama-se 1.º ano, mas eu ainda digo 1.ª classe, às vezes sou teimoso como os velhos de Junichiro Tanizaki).

Foi a minha avó Lourdes que me ensinou a escrever o meu nome. Lembro-me como se fosse hoje que não me apetecia muito aprender a escrever o nome. Queria ir jogar à bola. Mas ela insistiu e a coisa fez-se. Devo ter puxado a teimosia da minha avó.

A minha escola transformou-se já há alguns anos numa creche/jardim de infância. Lembro-me muito bem do pátio em cascalho onde brincávamos nos intervalos, correndo em redor das árvores. Boa notícia: as árvores continuam lá. Aliás, há mais vegetação do que na altura.

Em compensação, foi construído um pequeno anexo na extremidade do pátio e o edifício principal foi ampliado. Visto de fora, parece-me tudo um pouco apertado. Progresso. O progresso precisa de espaço para progredir. E muitas vezes, parecendo que expande, acaba por encolher.

Serve esta curta digressão pela alameda da memória para introduzir a melhor notícia que recebi este ano, uma notícia que dá conta de um progresso que é, na verdade, um regresso ao que antes se fazia. “Mas sendo assim, não é antes de um retrocesso de que falas, João?”. Não necessariamente. O progresso também pode passar, pura e simplesmente, por recuperar o que antes se fazia. Aqui vai a boa nova:

A escola primária de Cabrela reabriu no dia 24 de outubro, depois de oito anos encerrada.

“Foi a melhor notícia dos últimos tempos para a nossa vila. Um sonho tornado realidade. A reabertura de uma escola é um sinal de que pode haver uma viragem, um sinal de desenvolvimento no interior e simultaneamente uma melhoria significativa da qualidade de vida destas crianças. Para mim, e uma vez que vi a escola fechar portas no primeiro ano do meu primeiro mandato, com apenas três alunos inscritos, não consigo esconder a alegria que sinto”, confidenciou-me Paula Martins, presidente da Junta de Freguesia de Cabrela, concelho de Montemor-o-Novo.

A autarca esclareceu ainda que “as duas salas que compõem o edifício da Escola Básica têm vindo, ao longo dos anos, a ser objeto de pequenas obras de melhoria, o que fez com que, ao fim de 15 dias da decisão de abertura por parte do Ministério da Educação, estivessem todas as condições reunidas para a sua abertura”.

A população teve um papel fundamental para que o sonho se concretizasse, explica-nos: “Foram realizadas algumas reuniões com os pais, no sentido de os auscultar sobre a possibilidade de reabertura da Escola e qual a sua opinião face à possível matrícula dos seus educandos. Assim que se soou a notícia da possibilidade da reabertura da escola, a maior parte dos cabrelenses e muitos amigos de Cabrela levaram essa ideia para a frente como de um projeto próprio se tratasse”.

“Como se de um projeto próprio se tratasse”. Eu, vivendo longe de Cabrela, também o sinto assim. A reabertura de uma escola primária numa vila do interior do país, permitindo que as crianças da terra — das nove crianças que frequentam a Escola Básica de Cabrela, metade são nativas e as restantes pertencem a famílias que chegaram recentemente à localidade — estudem próximo de casa, com o que isso representa na construção de memórias, de identidade e de comodidade (não tendo de se deslocar para fora da vila para ir à escola, crianças e pais desgastam-se menos e poupam recursos), será sempre um projeto que diz respeito a toda a gente.

Afinal, é ou não verdade que o progresso nos transformou a todos em habitantes de uma “aldeia global”?

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