Eu vi a sopa matar os girassóis

Fiquei sem reacção. Demorei algum tempo até perceber o que tinha ocorrido. Por esta altura, os dois terroristas de arte já estavam de joelhos e com as mãos apoiadas na parede. O quadro estava cheio de sopa cor de laranja.

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Acção do movimento Just Stop Oil

Lembrava-me bem do edifício da National Gallery, em Londres. Ainda que só tivesse vindo por uma vez à capital inglesa, numa viagem com mais de dez anos, a minha memória conhecia bem a cidade e os seus pontos emblemáticos e reconhecia, com particular pormenor, as paredes cor de vinho e verde-escuras da galeria, que ficaram marcadas na minha cabeça (as peças de arte não tanto).

Esta sexta-feira, em Londres, tinha a manhã pela frente. Por isso, decidi entrar na National Gallery para rever os quadros esquecidos. Como a chuva estava a ameaçar, esta era a estratégia perfeita: ao lado dos quadros não apanharia uma molha à inglesa.

No museu, gostei particularmente da sala com os trabalhos de Monet. É a sala mais natural de todas, a mais calma. É possível estar em Londres e em Giverny ao mesmo tempo, entre pontes mágicas e jardins coloridos e húmidos. Esse é o poder deste agente do impressionismo. Foi um momento especialmente inspirador, porque, depois de me ter deixado levar pela energia da sala, revisitei uma viagem em família, realizada num passado cada vez mais distante.

Avancei para a sala seguinte, uma das derradeiras da galeria, e, ao longe, vi o quadro Girassóis na parede. Nesse instante, devo ter sorrido, provavelmente, porque essa é a reacção normal de uma pessoa que, apesar de não pertencer ao meio artístico, observa um quadro de Van Gogh. Sorri e o meu sorriso dizia aqui estás tu.

Já na sala, aproximei-me da tela, copiando o movimento de dezenas de pessoas que olhavam, maravilhadas, para aqueles girassóis brilhantes e intemporais.

E depois ouvi um berro bastante aflitivo: “Oh no, security!”. Fiquei sem reacção. Demorei algum tempo até perceber o que tinha ocorrido. Por esta altura, terroristas de arte já estavam de joelhos e com as mãos apoiadas na parede. O quadro parecia destruído, cheio de sopa cor de laranja, que tinha estado escondida em latas de tomate da Heinz. Ainda pensei que as latas fossem da Campbell e que o ataque explosivo tivesse sido orquestrado por fãs devotos a Andy Warhol, mas compreendi rapidamente que esta acção havia sido executada por dois membros do movimento Just Stop Oil — somente porque li os motivos estampados nas t-shirts brancas.

Por segundos, fiquei um pouco descansado, porque tinha assumido que o grito aflitivo se devia a um iminente ataque terrorista de uma pessoa contra outras pessoas, mas logo percebi que, de forma inesperada, tinha assistido a um episódio eminentemente histórico — tendo em conta que Girassóis havia sido atacado e possivelmente destruído; o plano desenrolou-se à frente dos meus olhos.

No entanto, o que me impressionou foi o absoluto estado de nervos das activistas — que eram autenticamente “just kids”. As latas Heinz rodopiavam no chão, assim como os seus corpos em êxtase, conscientes de que tinham cometido um crime.

Uma assumiu as rédeas do ataque, balbuciando palavras nervosas, profundamente automatizadas e decoradas; outra permaneceu com as mãos encostadas à parede, enquanto os girassóis de Van Gogh escorriam químicos. (As flores sobreviveram.)

Os seguranças da National Gallery apareceram entretanto. Vinham surpreendentemente calmos. A sua expressão facial indicava que situações como aquela eram recorrentes. De um momento para o outro, a sala foi encerrada e os visitantes foram levados para a sala adjacente. As portas fecharam-se. Os girassóis de Van Gogh haviam sido atacados e as duas miúdas foram detidas, de acordo com a Polícia Metropolitana de Londres.

Ao fim do dia, o Governo britânico não vai ceder perante as aspirações do movimento Just Stop Oil. Nos próximos tempos, outras formas de arte terão, certamente, o mesmo azar. Esta não foi a primeira intervenção do grupo na National Gallery; em Julho, já tinham orquestrado um atentado semelhante. A organização quer que o Governo britânico deixe de apostar em novos projectos associados à exploração de gás ou petróleo, parecendo desconhecer que esses são o combustível deste mundo. A arte é outra forma energética que o faz avançar. Destruir, de uma forma tão cobarde, ingénua e sensacionalista, é que um travão ao crescimento do mundo.

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