Tudo aquilo que calamos

Não quero contar-te as coisas desagradáveis que me passam pela cabeça, quando te vejo a ser moço e optimista e um pouco daquilo que eu era há uma década. Talvez o mais importante seja isto: não te vou dizer o quanto ver algo de mim em ti me perturba — essa esperança no futuro a dois que hasteias fácil e agilmente.

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Não é que eu não consiga dizer, e não é por acaso que aquilo que não digo tem de permanecer em segredo, não se pode saber. Magoar-te-ia mais do que qualquer seta aleatória que te perfurasse a pele e se cravasse na carne, mesmo que não haja ocasião disso acontecer porque não vivemos na Pré-História nem vamos à caça, eu e tu, e nunca nenhum de nós caçou nem pretende algum dia caçar; somos contra essa prática bárbara a que chamam desporto.

Não quero dizer que o “para sempre” é um fantasma que atemoriza, sobretudo quem tem presente a mortalidade de todas as coisas. Não quero dizer que às vezes desejo outras coisas, diferentes das que outrora habitei, algumas situações até meio insanas que se colocaram não sei como no cardápio da minha imaginação. Claro que a maior parte estão no domínio da fantasia; é contigo que quero viver coisas insanas a dois e estar triste ou contente, e quem sabe emigrar para uma cidade grande noutro país, do outro lado do Atlântico. Mas aquilo que mantenho oculto tem de permanecer assim, na sombra, no silêncio que carrego para que não sejas tu a ter de levar o fardo.

Nunca traí alguém, não penses que é de infidelidade que se trata, o nosso caso é mais delicado. Não sei porque digo “o nosso caso” quando o caso é só meu, não é teu e meu, nem meu com outro homem ou outra mulher, o caso é comigo, com a minha disforia, com os meus 48 anos de vida, a caminhar em grande velocidade para uma existência de meio século. Não sou a actriz brasileira Cláudia Raia, não mandei congelar os meus óvulos há uma data de anos antecipando uma dispendiosa fertilização in vitro que lhe permitiu uma gravidez geriátrica.

Olho para a tua inexperiência de quem se estreia nas coisas dos adultos — aos trinta e poucos anos está tudo a começar e vislumbram-se fraldas e berçários como um oásis redentor para a cáfila que teme a solidão — e sinto pavor de defraudar essa possibilidade de luz que apontas no caminho à nossa frente. O azedume da experiência sobe-me à boca querendo materializar-se em coisas tristes, típicas dos adultos com mais experiência que olham para tudo olham com enfado e desapontamento.

Não quero contar-te as coisas desagradáveis que me passam pela cabeça, quando te vejo a ser moço e optimista e um pouco daquilo que eu era há uma década. Talvez o mais importante seja isto: não te vou dizer o quanto ver algo de mim em ti me perturba essa esperança no futuro a dois que hasteias fácil e agilmente , que a minha capacidade de olhar na mesma direcção se tornou coxa, imunda, talvez irrecuperável. Não quero que daqui a uma década sejas tu esse alguém cuja visão lhe foi roubada e que apenas imagina monstros e abismos no caminho, na escuridão.

Ainda assim, aqui estou ao teu lado. Uma pessoa que cala coisas ao teu lado porque amar também é calar, e então eu calo-me bem caladinha. E tu também calarás as tuas coisas, terás várias para dizer e que ocultas. Talvez uma parte fundamental do amor seja tudo aquilo que calamos.

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