Ao povo português

Estou muito preocupado com as ameaças reais que sofre nossa democracia no Brasil.

Eu estava em Portugal em 2020 quando foi anunciada a pandemia da covid-19. Vi o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na varanda de sua casa, respeitando o protocolo científico, diante da provável decretação da pandemia. Pouco sabíamos da tragédia que se aproximava. A postura do presidente era uma representação de respeito à vida. Foi a ultima imagem que guardei do país que, tão generosamente, recebia a digressão de meu monólogo teatral Autobiografia Autorizada. Cruzei Portugal percorrendo 15 cidades. Caminhei pelas ruas recebendo o carinho do povo e de tanta gente africana e de outros países que andam por aí.

Tive que interromper a digressão e voltar para o Brasil por causa da crise sanitária. Jamais imaginaria que o desrespeito e a falta de empatia seriam, em tão baixo nível, a atitude do presidente brasileiro com relação a grave ameaça que a epidemia representava.

Aterrorizados, víamos as mais obscurantistas atitudes oficiais com relação a doença. O governo brasileiro trocou quatro ministros da Saúde durante a pandemia. Recusou a oferta das vacinas e desperdiçou a excelente estrutura vacinal que o país possui.

O nosso mandatário apostou na morte e conseguiu. 725 mil brasileiros morreram enquanto o representante da extrema-direita andava a cavalo, de jet ski ou motocicleta. Imitava na TV a respiração ofegante dos contaminados, não usava máscara e não se vacinou. E debochava de quem tomava vacina, dizendo que, com os efeitos desconhecidos, “poderiam virar jacarés”. Acusava os que se protegiam do vírus de não serem suficientemente másculos. O resultado foi sermos um dos países com mais mortos na equação com o número de habitantes.

Ele comprou a parte fisiológica do congresso com emendas secretas e contou com a complacência de boa porção da elite econômica brasileira, que o ajudou a se eleger, apesar de conhecer sua índole homofóbica e misógina.

Nesse momento em que me preparo para retomar minha digressão portuguesa, em outubro, gostaria de estar escrevendo sobre a paixão que desenvolvi pelo escritor Miguel Torga. Admiração que cresceu quando soube que ele viveu no Brasil de 1920 a 1925, período em que passou sua juventude trabalhando como vaqueiro na fazenda de um tio. Imaginem que marcante foi essa experiência para o escritor.

Passei toda a etapa de minha turnê portuguesa com os contos e poesia de Miguel Torga a me fazer companhia e revelar a alma lusitana.

Nesse momento também sou tomado pela agradável expectativa de conhecer a Madeira, Lagos e Vila Franca de Xira, além de poder caminhar pelas ruas da Lisboa que tanto amo e admiro por sua história e sua luz extraordinária. Andar pelas alamedas de Lisboa é como se estivesse filmando e planejando cenas de um filme imaginário. Me encontrar com o público português me apresentando em seus belíssimos teatros é uma esperança que me enche de alegria.

Mas estou muito preocupado com as ameaças reais que sofre nossa democracia.

Nossos indígenas, os maiores guardiões das florestas estão sendo assassinados. A maior reserva indígena brasileira está invadida por mais de 20 mil mineradores ilegais acusados de violar as mulheres e a floresta. Até mesmo um parque florestal na capital Brasília teve 40% de sua área diminuída por um decreto presidencial.

Os eleitores têm medo de revelar suas preferências e serem agredidos. Convivemos com o expectável mais terrível, de que o resultado eleitoral não seja respeitado. A venda de armas, estimulada pelo presidente, cresceu assustadoramente. Os clubes de tiro se multiplicam por todo Brasil, são preocupantes sinais de que podem provocar uma escalada irrefreável de violência.

Enquanto desfruto a feliz possibilidade de receber novamente o carinho do povo português, compartilho com os leitores minhas preocupações com o destino do regime democrático em meu país.

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