A infantilização do público

O jornalismo não está aí para possuir a verdade, apenas pode expor a verdade na sua (im)possibilidade.

Desde o início da guerra na Ucrânia que o acompanhamento jornalístico da vida política do PCP tomou um novo rumo. Duas linhas foram seguidas: a primeira teve o seu clímax na capa do Jornal i relativo à Festa do Avante! (o conteúdo desta imagem é tão evidente e está tão despropositadamente fora do âmbito do jornalismo que torna qualquer análise supérflua); a segunda caracteriza-se por uma forma subtil de menorização e infantilização das posições do PCP, através de uma simplificação permanente do seu conteúdo político.

Esta última merece ser observada com um pouco mais de atenção. O artigo de segunda-feira, dia 5 de Setembro, da jornalista Ana Sá Lopes em torno da Festa do Avante! é um exemplo paradigmático desse registo, a começar pelo título ("Foi o ‘declínio do capitalismo’ que obrigou Vladimir Putin a invadir a Ucrânia"), num jogo hábil de citação e conclusão (mas veja-se, igualmente, o artigo de título “O rebanho saiu em Junho, a Festa do Avante! começa esta sexta-feira").

As declarações políticas e os factos observados ao longo do artigo são habilmente conduzidos em direcção a um lugar que mais se assemelha a um Luna Park, como se estivéssemos diante de crianças pueris e naïfs fora desse mundo de adultos a partir do qual a jornalista lança o seu olhar. Ana Sá Lopes não faz um registo imparcial do conteúdo ideológico em causa, mas orienta-o e molda-o de acordo com o sentido das convicções políticas que tomou para si. Não ouvimos o PCP, ouvimos o PCP segundo Ana Sá Lopes. O “artigo de opinião” tomou conta da peça jornalística. Mas o mais relevante não é que a observação imparcial tenha sido tomada pela opinião do jornalista, é a natureza do próprio registo. Ao procurar infantilizar o PCP e as suas posições ideológicas ASL nem se dá conta (tal é o fechamento ideológico do seu “jornalismo") que aquilo que está a infantilizar não é outra coisa senão o próprio leitor e o próprio jornalismo.

Mas o que permite a ASL usar esse registo é o facto de esta pressupor convictamente que está a falar e pode falar em nome de alguém, ou melhor, de uma maioria, de um todos. Ou melhor, que fala em nome da verdade. É neste ponto que nos encontramos perante aquele que é talvez o paradoxo essencial do jornalismo como instituição burguesa: o seu objectivo é a verdade, coloca em marcha um conjunto de princípios éticos e técnicos de registo objectivo e neutral da realidade, mas, simultaneamente, como vemos exemplarmente no caso da Guerra na Ucrânia, há opções editoriais claras e assumidas daquilo que se decide ser notícia e daquilo que se decide não ser notícia, ou melhor, daquilo que no campo interior da verdade é relevante e não é relevante, isto é, daquilo que é verdade na verdade (veja-se a desvalorização do relatório da Amnistia Internacional sobre a Guerra na Ucrânia, o que, aliás, mereceu um amplo comentário do Provedor do Jornal PÚBLICO). Neste campo, do qual o “critério da redacção” é o melhor exemplo, o mecanismo de verificação não é a lei da objectividade científica, mas o seu contrário, a lei do senso comum. A lei daquilo que na verdade já está previamente estabelecido como verdade — e que, por isso mesmo, não precisa de verificação. As expressões “critério da redacção” e “interesse público” são os artifícios técnicos e retóricos que permitem ao jornalismo dissimular esse paradoxo e cobrir “objectivamente” esse momento do seu procedimento que só pode resultar de uma decisão que será sempre ideológica e sempre política.

Voltando ao artigo de ASL, mais do que o olhar ideológico subjacente ao seu registo jornalístico, aquilo que é relevante é o facto de esta se colocar na posição de alguém que fala em nome da verdade. E este é o ponto em que o barco do jornalismo desapareceu definitivamente do nosso horizonte. A crise do jornalismo é também essa: não é apenas a falta de leitores, não são apenas as partilhas dos artigos pelas redes sociais, não é apenas a ambiguidade do “critério da redacção”, mas é essa tentação de falar em nome da verdade, de uma verdade que está previamente estabelecida enquanto tal.

Os textos de ASL, impregnados por um registo quase caricatural, escolhem calculadamente e detalhadamente os objectos que lhe interessam para ir ao encontro daquilo que já está previamente definido como verdade. E, por isso, o lugar que ASL deixa vazio na sua reportagem não é apenas o lugar do jornalista, é o lugar do jornalismo. Mas isto só é possível aí onde se construiu uma relação de abstracção e alienação total e absoluta relativamente às condições estruturais do jornalismo e da posição que este ocupa no centro das sociedades liberais como poderoso instrumento de (in)formação de leitores e daquilo que habilmente se designou como “opinião pública”. Que nem todos os leitores o saibam e não o queiram saber é um facto particularmente grave, mas que o jornalista finja não saber aquilo que deveras sabe é ainda mais grave e em nada abona da validade e do futuro do jornalismo. O jornalismo não está aí para possuir a verdade, apenas pode expor a verdade na sua (im)possibilidade.

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