O que ficou de fora do novo Estatuto do SNS

O novo estatuto do SNS traz consigo algumas inovações que podem ser interessantes.

O Serviço Nacional de Saúde encontra-se num período definidor da sua história. Os problemas estruturais que exibia foram agravados com o impacto da pandemia. A consequência de largos anos sem o necessário investimento em condições materiais, recursos humanos e planeamento estratégico, tornou-se cada vez mais visível num contexto de natural exaustão pós pandémico.

O novo estatuto do SNS traz consigo algumas inovações que podem ser interessantes. A nova comissão executiva representa uma separação entre a coordenação política e a gestão operacional das diferentes unidades de saúde do SNS. A pandemia demonstrou a enorme lacuna na coordenação da resposta assistencial, especialmente em períodos de pico de procura, pelo que esta função assume-se como importante e necessária para o futuro imediato.

Mas há um perigo potencial nesta opção, pois se as Administrações Regionais de Saúde não possuírem capacidade nem influência para efetuarem o planeamento regional dos recursos, a tendência do novo organismo executivo será para centralizar mais a gestão e a decisão, atropelando o objetivo de descentralizar e aproximar a decisão dos cidadãos e das suas necessidades regionais.

Infelizmente houve quatro temas que ou ficaram de foram do estatuto, ou ficaram aquém das expectativas. Começando nos recursos humanos, não é claro a quem compete esta responsabilidade. As instituições continuam sem real autonomia, exceção aberta para quando existir “insuficiência devidamente fundamentada”, e aquilo que se depreende na leitura do estatuto, é que o Ministério das Finanças continuará a ter a palavra final sobre este assunto. Encontramos alguns avanços no capítulo da mobilidade dos profissionais, aspecto nunca colocado como opção para solucionar os problemas das urgências, mas também não é claro quem tem a responsabilidade de mobilizar os profissionais para os locais onde são mais necessários, ou com o objetivo de melhorar a eficiência e qualidade dos cuidados prestados. Se for exatamente como surge no estatuto “O regime de mobilidade dos trabalhadores em funções públicas é aplicável aos profissionais de saúde do SNS”, significa que ninguém assumirá esta responsabilidade, e o problema irá continuar.

A forma de captar recursos para o SNS também não é abordada. Desde 2006 que o Estado imputa às famílias uma maior fatia dos gastos em saúde. Ora isto é um problema para a equidade, tanto a nível de acesso aos cuidados como de financiamento. A despesa das famílias com a saúde atingiu os 30,6% do total de despesa em 2019, e em 2021 alcançou o recorde de 6,8 mil milhões de euros. Curiosamente, os seguros privados têm reduzido o seu papel no financiamento dos cuidados de saúde, apesar de existirem mais pessoas seguradas, pelo que o recuo do estado tem correspondido integralmente ao aumento das obrigações das famílias. O estatuto deveria não só fazer menção a este problema, como comprometer-se com a sua resolução. Aumentar o peso do Estado para os 70% do total da despesa em saúde, além de melhorar a equidade e o acesso aos cuidados de saúde, trata-se de uma meta perfeitamente alcançável. Ficaríamos no mesmo nível que Espanha.

A modernização do SNS não se faz sem a evolução da forma como as profissões trabalham. A redefinição papéis sociais da saúde, ou seja, o aumento de competências onde a enfermagem é o exemplo mais evidente, mas não o único, é mesmo essencial se queremos diminuir o fosso que separa Portugal dos restantes países europeus. Há décadas que esta evolução se materializou em países como Inglaterra ou Espanha, com ganhos óbvios para o cidadão, mas entre nós teima em ser tabu. O estatuto não acrescenta nem abre a porta a esta necessária revolução. Quanto mais tempo teremos de aguardar?

Por fim, no contexto atual de emergência climática, a prestação de cuidados de saúde deve ser ambientalmente sustentável. O setor da saúde nacional é responsável por 5% das emissões dos gases com efeito de estufa, sem esquecer, que se trata de um enorme consumidor de energia e água, e um produtor de resíduos que carecem de tratamento especial. O estatuto poderia ter tido a ambição de elencar a saúde verde como objetivo, mas perdeu-se uma oportunidade para sinalizar uma mudança necessária.

Em 2018, António Costa afirmava: “Meu caro António Arnaut, vamos aguentar o SNS, nesta geração e nas próximas gerações porque o SNS veio para ficar e é, seguramente, uma das grandes marcas e grandes dádivas do Portugal de Abril”. O estatuto ajuda a cumprir esta promessa, mas ficou aquém do que poderia fazer e garantir.

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