O Jesus de Elmano Sancho recusa a vida neste mundo

No segundo capítulo da trilogia A Sagrada Família, o autor e encenador foca-se em Jesus, o Filho, um jovem adulto sem vocação para messias e que decide entregar-se ao sacrifício pessoal. No Teatro da Trindade, em Lisboa, até 30 de Outubro, seguindo-se digressão nacional.

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Vicente Wallenstein é Jesus na nova peça de Elmano Sancho FILIPE FERREIRA
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Maria (Joana Bárcia) e Jesus FILIPE FERREIRA
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José (Elmano Sancho) e Maria FILIPE FERREIRA

Jesus carrega no nome o peso de um messias. Mas não é essa a sua natureza, não está fadado a sacrificar-se em nome da humanidade. Pelo contrário, quando anuncia no início de Jesus, o Filho, a segunda de três peças de Elmano Sancho inspirada pelas figuras de um oratório, que decidiu morrer, aquilo que diz perante os pais, perante todos, é a sua recusa do mundo em que vive. E, portanto, ao invés de trazer qualquer mensagem de salvação universal, Jesus quer apenas salvar-se a si mesmo e retirar-se da vida.

Depois de Maria, a Mãe, Elmano Sancho avançou para o segundo capítulo da sua trilogia – em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, desta quinta-feira até 30 de Outubro, e depois em digressão por Famalicão (4 de Novembro), Bragança (17), Castelo Branco (25), Ponte de Lima (9 de Dezembro), Funchal (13 e 14 de Janeiro), Guarda (4 de Fevereiro) e Faro (9) – com a imagem de um filho “isolado num espaço, que pode ser um quarto, enquanto recusa de viver”. “Primeiro, desistindo de conviver com as outras pessoas e com a sociedade em geral, em última instância deixando-se morrer. Pela perda da esperança, pela perda da fé. E quando perde a coragem para se matar, a única coisa a fazer é deixar-se morrer.”

Escrito assim, Jesus, o Filho pode soar a um espectáculo insuportavelmente pesado. Mas é rasgado amiúde por um humor (por vezes, ácido e cruel) que o autor e encenador vai dinamitando à volta das suas três personagens, Jesus (Vicente Wallenstein), Maria (Joana Bárcia) e José (o próprio Elmano), ao mesmo tempo que não permite que a narrativa se feche numa sequência exacta. Logo de início, Jesus confessa ter-se tornado “misterioso, enigmático, inatingível”, numa tentativa esforçada de “não viver uma realidade vulgar e estúpida”. Mas é a essa vulgaridade que parece render-se, cuspindo que se sente “um homem banal, igual a tantos outros”, mas também “um homem que não aguenta mais”.

Isolamento voluntário

Em parte, Elmano Sancho baseou-se no transtorno “hikkimori”, termo japonês relativo ao extremo isolamento e exclusão social voluntários, para a escrita de Jesus, o Filho. Foi uma das suas ferramentas para definir a personagem do filho, alguém que procura talvez criar uma ficção com os seus pais em vez de se entregar à dureza da realidade. Em vez de viver em comunidade, como parece ser mandamento natural e social, este é um homem que mais do que não querer obedecer a regras de convivência não quer ter de lidar com outros corpos, outras presenças, outras vontades. E o isolamento voluntário, ao contrário do forçado – como aconteceu durante os confinamentos da pandemia, parecem ao autor “uma tomada de posição muito mais interessante”. “Era isso que queria fazer no corpo de um jovem, tendo ele a consciência de que já não valia a pena sequer viver, porque, no fundo, as aspirações que temos como adolescentes ou jovens adultos acabam por se desvanecer ao longo do tempo. E para quê viver num mundo onde a fé e a esperança já não têm lugar e onde só nos falta comermo-nos uns aos outros?”

Torna-se evidente desde o início de Jesus, o Filho que entre filho e pais a comunicação é um falhanço. Mesmo que nunca o texto nos permita concluir se esta mãe e este pai são “reais” ou uma projecção do filho – quando ambos apoiam e incentivam Jesus a matar-se, estamos sobretudo numa ficção do próprio –, se estão os três mortos ou não, se o acidente a caminho da comemoração dos 50 anos de casados foi uma fatalidade ou Jesus a tentar escapar-se da vida sem deixar os pais “órfãos” de um filho. A literalidade e a verosimilhança não são exactamente dados importantes para a peça, mas a dificuldade das relações filho e pais é inescapável. “Há sempre uma violência iminente na família”, acredita Elmano. “Porque é o espaço mais íntimo que temos, e com a intimidade vem o amor, mas também a violência.”

Estruturando o texto nos passos da confissão (exame de consciência, arrependimento, confissão e cumprimento da penitência), Elmano Sancho justifica que “a confissão não é algo propriamente religioso” e que estes passos a caminho de uma qualquer redenção pessoal é algo a que “recorremos sempre em situações de maior angústia”. O lado íntimo e pessoal aqui é, por isso, de crucial importância. Porque este Jesus contemporâneo imaginado pelo autor e encenador é alguém “destituído da função que atribuímos a Jesus” – não quer ser messias e, não vendo no destino colectivo qualquer salvação, opta por se sacrificar em seu nome individual, sem trazer quaisquer consequências ao mundo à sua volta.

O sacrifício e o gesto maior deste Jesus é, na verdade, o da recusa. A sua suprema ousadia é, afinal, a escolha de não fazer parte.

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