Irá o novo ministro da Saúde satisfazer a última vontade do criador do SNS?

O Ministério da Saúde e outras entidades afins não podem ignorar a mensagem do ex-director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, devendo discuti-la se, na verdade, quiserem interromper a “triste agonia” do SNS.

O que nos exigem é trabalho, trabalho e mais trabalho...
Trabalhador ucraniano da auto-estrada do Sul, 2001

Saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço até ao fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada.
Fernando Pessoa (1888-1935)

Em tempos em que não nos reconhecemos, de tal modo são difíceis, acabamos por receber de alguém uma luz de esperança, esperança de que estávamos esquecidos por tanta mentira e hipocrisia, inevitavelmente mascaradas de verdade e de bondade. Deve-se esse renascer da esperança a uma sinceridade tão límpida, da qual nos desabituáramos, que não podemos deixar de nos emocionar e de exprimir a nossa gratidão a esse alguém que inesperadamente nos toca e revigora espiritualmente, não deixando que caiamos na apatia ou soçobremos perante o cansaço que forçosamente implica não desistir.

Uma das vezes que vivi essa experiência foi com a leitura de uma crónica do jornalista Nuno Pacheco, em 2001. Nunca jornal algum denunciara tão veementemente o que de forma obscena acontecia em Portugal. E, nesse sentido, Nuno Pacheco, mas também Ricardo Dias Felner, entraram nas minhas aulas. Foi com os seus textos, que sobressaíam também pela escrita, que muitos alunos, ensino nocturno e diurno, indiferentes ao que se passava, compreenderam a trágica situação, olharam o Outro que um dia poderia ser um deles, alterando, alguns, o seu pensamento sobre a situação vergonhosa que ocorria por todo o país. Eis um extracto dessa crónica, datada de 30.01.2001: “Estes novos imigrantes, vindos do Leste, quase sempre com formação superior, são trabalhadores que […] realizam os trabalhos que ninguém quer. Aceitam contratos inaceitáveis. Dormem onde nem o mais miserável dos cães deveria dormir. E, sobretudo, não os vemos – estão por detrás das vedações das obras públicas, no meio da lama, onde nunca vamos. É tremendo apercebermo-nos da forma desapiedada como são explorados por empreiteiros, sub-empreiteiros, traficantes e mafiosos, perante o olhar distraído das autoridades.”

Sabemos, porque a vida continua a evidenciá-lo, que o poder político é, por opção, lento a reagir ou fingido a reagir, por isso os imigrantes, seja qual for a sua geografia, continuam a ser “explorados por empreiteiros e sub-empreiteiros, traficantes e mafiosos, perante o mesmo olhar distraído das autoridades”. Sabemos quanto baste, de ontem e de hoje, tenha sido na auto-estrada do Sul ou mais recentemente na apanha de frutos vermelhos, em Odemira, ou na restauração, de norte a sul do país. Continua “a faltar a coragem para definitivamente compreender o que sabemos e tirar conclusões” que determinem efectivamente uma mudança. Alterou-se a situação dos imigrantes em Odemira? Procura a Comunicação Social inteirar-se do que tem sido feito por Juntas de Freguesia e Câmaras para evitar essa situação e outras afins? Não é possível continuar a adiar ou a fingir que se faz qualquer coisa. Não é admissível esquecer o que humanamente chocou e que, consequentemente, exige necessidade de investigar e de informar sobre o que agora se passa, ou seja, se a situação de quem estava a ser explorado e humilhado se mantém ou se pelo contrário houve uma benéfica intervenção nesse sentido, prevenindo também casos futuros. Todos os infames jogam precisamente com o esquecimento para persistir nos seus actos lucrativos. Seremos cúmplices dessa infâmia, se pactuarmos com o nosso silêncio e aqui a Comunicação Social pode ser soberana. Assim o queira.

A experiência mais recente sobre a força que um texto pode transmitir quando desenvolve inteligentemente uma análise crítica, relativa a determinada situação polémica, sugerindo alterações que a solucionariam e deixando bem explícito que é possível concretizá-las, aconteceu a 24 de Agosto p.p., também no jornal Público, com o texto da autoria de José Manuel Amarante, ex-director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e ex-director do Serviço de CPRE no Hospital de São João. O título encontrado “A triste agonia do Serviço Nacional de Saúde e o silêncio do Governo” sintetiza a verdade que não é possível a alguém ignorar.

Numa argumentação que António Arnaut aplaudiria, estando, onde quer que se encontre, certamente entristecido pela promessa quebrada de António Costa de “não deixar morrer o SNS” (2018), o Professor José Manuel Amarante enumera o que poderá ser feito e cuja justeza das sugestões qualquer pessoa, minimamente inteligente e convicta defensora do SNS, apoiará. Confesso que mentalmente o abracei, Professor, e a minha gratidão, pela grandeza do seu texto, não tem adjectivo que a traduza. A sabedoria, a experiência, o sentido prático, a sinceridade, a solidariedade que sentimos nas suas palavras, a convicção e a veemência, visíveis nos vários argumentos que desenvolve, não podem ser ignorados pelo Ministério da Saúde, ou mais propriamente pelo novo Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, que certamente terá justificado não poder “recusar o convite” pelo facto de na sua qualidade de médico ter conhecimento efectivo da “triste agonia” em que se encontra o SNS.

Ao longo do texto, apontam-se soluções que vêm em defesa dos que dependem do SNS e não podem dar-se ao luxo de hospitais ou consultas particulares, pagando muitas vezes com a morte a espera absurda que a má sorte lhes reserva. Não omite também, o Professor José Manuel Amarante, e bem-haja por isso, situações que põem a nu comportamentos perversos que indiscutivelmente têm determinado esta agonia lenta do SNS, de que não está isenta de culpas a própria Ordem dos Médicos, muito nitidamente defensora, por exemplo, do privado ou da não necessidade de formar mais médicos. Clínicas e hospitais privados têm surgido como cogumelos, em gigantescas instalações, expondo o quanto têm enriquecido mormente com a Covid e com a “tarifa de segurança Covid” (justificada com custos de higienização) que continuam indecentemente a cobrar.

Disposto a enunciar aleivosias que persistem, o autor enumera-as, explicitando com clareza o que está mal, nomeadamente o quase desaparecimento dos “concursos públicos para outorgar o título cimeiro da carreira hospitalar”, “outrora muito exigentes”, com o consequente despudor das administrações que recrutam “os que querem”, indiferentes à sua “competência e qualidade”. Focada é também a inércia dos vários governos ou a sua cumplicidade escondida pelo facto de os “médicos formados em escolas públicas, com propinas irrisórias e que adquirem a especialidade no SNS”, para além de serem remunerados durante os 5 ou 6 anos de formação, “poderem partir para o sector privado no dia a seguir a terminarem a especialização, sem que haja qualquer compensação para o SNS”, propondo o que todos pensamos ser elementar: “cobrar a esses médicos ou à instituição privada o custo da formação”, o que acontece, como refere o autor, com “os médicos e pilotos que se desvinculam da Força Aérea” e até no futebol, “em que os clubes onde os jogadores fizeram a formação são hoje ressarcidos aquando das transferências!”. A cedência a “interesses corporativos” é outra situação denunciada, especificamente a obrigatoriedade do médico generalista ou médico de família tirar a especialidade de Medicina Geral e Familiar, determinando que cada vez faltem mais médicos de família aos cidadãos, com o consequente recrutamento de médicos generalistas da “América Latina”. Maior absurdo?... Ao referir ainda a “crise na obstetrícia”, questiona o Professor o inexplicável não-aproveitamento do “papel das enfermeiras-parteiras” que constituiriam uma mais-valia na presente situação que se vive no SNS.

O Ministério da Saúde e outras entidades afins não podem ignorar a mensagem do ex-director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, devendo discuti-la se, na verdade, quiserem interromper a “triste agonia” do SNS. Nós, os seus utentes, sabemos por experiência nossa e de familiares a espera de anos para uma consulta ou cirurgia, ou o caos que normalmente encontramos numa ida às urgências ou a falta de pessoal que é determinante no abandono que muitos doentes, por vezes, sofrem, com destaque para os mais velhos.

Espera-se que o novo Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, aproveite a oportunidade oferecida e demonstre com as suas decisões “saber trabalhar”, não desperdiçando as “consequências vantajosas” decorrentes das transformações que o Professor José Manuel Amarante pormenorizadamente propõe. Sendo também médico, compreenderá a aflição visível no pedido do seu colega de profissão e também de partido, António Arnaut, e desejará convictamente honrar a palavra dada pelo seu Primeiro-Ministro, satisfazendo uma última vontade do criador do SNS.

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