Em nome dos portugueses, amofinar os portugueses

Não teríamos ficado mal representados se, em vez de fazer de conta que tudo estava a correr como era suposto, Marcelo tivesse empurrado o pau da barraca. Neste caso concreto, bastar-nos-ia que desse conta do seu desconforto.

Marcelo esteve ao lado do presidente Jair Bolsonaro nas comemorações dos 200 anos da independência do Brasil. Acabou por ser fotografado atrás de uma bandeira que, em vez das estrelas do brasão no centro com as palavras “Ordem e Progresso”, tinha a fotografia de um bebé e duas frases: “Brasil sem drogas” e “Brasil sem aborto”.

Marcelo Rebelo de Sousa diz não se ter apercebido dessas inscrições na bandeira. É fácil acreditar nessa afirmação. Disse ainda que não sentiu desconforto por ter estado naquela situação.

Como pode um democrata dizer ter-se sentido confortável ao lado de um presidente, numa comemoração oficial, depois de saber que ele usou a bandeira nacional para fazer propaganda de conteúdo religioso, moralista e que remete para o ideário de ditaduras fascistas?

O argumento do Presidente da República para se ter sentido confortável naquelas circunstâncias é o seguinte: “O que fica para a História é que Portugal esteve presente num momento histórico”. Aludiu ainda aos portugueses a viver no Brasil e aos brasileiros a viver em Portugal e à sua função de representar a nação portuguesa.

São argumentos certamente atendíveis. Mas há aqui um problema que merece reflexão por parte de todos nós.

Já tínhamos assistido à presença de Rui Moreira numa cerimónia onde Jair Bolsonaro invocou a máxima fascista “Deus, Pátria, Família”. Agora vimos Marcelo Rebelo de Sousa ao lado de um homem que é de facto o Presidente da República do Brasil, mas que atuou como candidato presidencial, e não como Presidente da República, e que, como é habitual, fez afirmações que ofendem os mais elementares valores democráticos.

Bolsonaro fez campanha eleitoral pura e dura no seu discurso das comemorações e ignorou por completo – é esta a descrição unânime na imprensa – a efeméride que estava a assinalar. Apelou ao voto, criticou Lula, chamou a sua mulher de princesa, disse que ela era uma mulher de Deus, como convém a qualquer ditador, e ainda fez ecoar uma alusão à sua virilidade.

Negócio é o seguinte:

Marcelo foi à comemoração dos 200 anos de independência do Brasil, mas acabou por participar numa ação de campanha para a eleição presidencial daquele país. Marcelo estava ao lado do Presidente da República do Brasil, mas quem efetivamente esteve ao seu lado foi o candidato Bolsonaro e igual a si mesmo.

Jair Bolsonaro transformou uma cerimónia oficial no palco da sua campanha eleitoral. Tudo o que fez e disse roça, para a maioria dos portugueses, o repugnante. É certo que, mesmo que tivesse sido outro presidente a fazer uso eleitoral descarado de um ato oficial, na presença do nosso mais alto representante, seria sempre uma atitude incorreta.

Marcelo defende-se com o que ficará para a História. A pergunta que ocorre fazer é: mas a História também vai fazer de conta que tudo se passou normalmente? Qual é o valor da História se ela não registar os acontecimentos tal qual eles aconteceram? É suposto fingirmos todos que o que teve ali lugar foi a comemoração dos 200 anos da independência do Brasil?

Isto faz lembrar o sketch dos Gato Fedorento em que um pai, Ricardo Araújo Pereira, relata um episódio que viveu com o seu filho. Contou o pai:

- O meu filho é uma joia de moço, mas há dias fui dar com ele a espetar-se com uma seringa num braço. E eu: “Ai, Carlos Jorge, que tu também já andas metido com os diabetes como o teu avô.” E diz ele: “Não, não, que isto é droga.” E eu: “É droga, é... O teu avô também começou com essa brincadeira dos diabetes e acabou atropelado por uma mota.”

Está a ser pedido aos portugueses que se comportem como o pai do Carlos Jorge; que façam de conta que, aquilo que está à sua frente cristalino como a água, é outra coisa e que é uma coisa inócua.

Coisas piores já nos foram pedidas e a elas já acedemos. O nosso presidente cumpriu o protocolo e teve um comportamento, desse ponto de vista, irrepreensível. Mas não teríamos ficado mal representados se, em vez de fazer de conta que tudo estava a correr como era suposto, Marcelo tivesse (usando uma expressão do Brasil) empurrado o pau da barraca. Neste caso concreto, bastar-nos-ia que desse conta do seu desconforto.

É que a maioria dos portugueses, que Marcelo representava, não é contra o aborto nem simpatiza com as propostas ou com os comportamentos de Bolsonaro. Resta saber até que ponto aceitam que as regras do protocolo se sobreponham ao que os seus princípios exigem. Em nome dos portugueses, como disse o pai do Carlos Jorge, alguém deveria ter dito a Jair Bolsonaro que comesse antes uma peça de fruta.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 32 comentários