A fabulosa Ilha do Corvo e um “quarto” com vista para o mar

Singular e de excepcional beleza, a Ilha do Corvo alberga uma significativa riqueza de flora e fauna, escreve o leitor Helder Taveira. Já para não falar do imponente Caldeirão.

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Na ilha do Corvo Helder Taveira

O Corvo, no arquipélago dos Açores, é a ilha portuguesa mais remota e certamente dos lugares mais isolados da Europa. Geologicamente, teve origem num único vulcão e, por isso, é também conhecida como “Ilha Vulcão”. Juntamente com a vizinha ilha das Flores, forma o grupo ocidental, e ambas localizam-se sobre a placa tectónica americana e não sobre a europeia como as restantes ilhas do arquipélago.

Esta ilha integra a Rede Mundial de Reservas da Biosfera da Unesco desde 2007. Uma verdadeira jóia no meio do Atlântico.

O vulcão extinto no Norte da ilha deixou como recordação a imponente caldeira (Lagoa do Caldeirão) que é, sem dúvida, a maior atracção da ilha.

A ilha do Corvo, assim chamada devido ao grande número de corvos-marinhos que aí existiam, foi descoberta em 1452, por Diogo Teive, capitão de caravela e cavaleiro do Infante Dom Henrique. O único povoado da ilha é a Vila do Corvo, a mais pequena vila e concelho de Portugal.

As ruas de Vila do Corvo são estreitas e sinuosas, desenhadas para protecção dos ventos fortes que por vezes assolam a ilha, serviam também para confundir os piratas e corsários que aí aportavam. É um local altaneiro, com o casario até ao mar, ideal para contemplar o imenso, e por vezes revoltoso, oceano.

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Cagarros helder taveira

O Corvo também conhecido como a Ilha do Marco, devido à sua posição geográfica, entre o Novo e o Velho Mundo, foi um importante ponto de passagem das grandes rotas atlânticas, tendo sido alvo de ataques de piratas e corsários, daí os primeiros corvinos não terem tido uma vida fácil. A pequena comunidade defendeu-se como pôde de piratas e corsários que assolavam a ilha na procura de bens e pessoas que escravizavam.

No século XVII, dez naus de piratas berberes tentaram invadir o Corvo e foram impedidas pelos corvinos, que, tirando partido da orografia do alto da ravina, conseguiram evitar o saque, numa batalha que durou 11 horas e que foi possível avistar da vizinha ilha das Flores. A vitória foi atribuída à Nossa Senhora dos Milagres, nome da actual igreja da Vila.

Singular e de excepcional beleza, a Ilha do Corvo alberga uma significativa riqueza de flora e fauna, incluindo espécies endémicas e é, por isso, um local privilegiado para a observação de aves. Se a pequenez em área territorial não retira valor ambiental ao Corvo, o diminuto número de habitantes (386 habitantes em 2021) não impediu o desenvolvimento de um rico património cultural.

Tendo já pernoitado em todas as ilhas com excepção da ilha do Corvo, comprei a viagem com esse destino.

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O autor no Corvo

Quando tentei arranjar alojamento, logo percebi que não iria ser fácil conseguir lugar. O único e pequeno hotel e o único alojamento local, não tinham vagas.

Feita a mochila e com o saco-cama como precaução, lá parti para a mais pequena ilha de Portugal, onde apenas tinha estado há uns anos, durante umas horas. A ideia era conhecer melhor o povo corvino e fazer uma caminhada no trilho do imponente Caldeirão.

Assim que aterrei, fui ao hotel e, para surpresa minha, tinha lugar para uma noite devido a uma desistência. Resolvido o problema de alojamento para essa noite, com a mochila às costas, passeei pela vila do Corvo, passando pelas suas ruas estreitas e desertas. Do casario que desce até ao porto usufrui-se de uma vista soberba sobre a ilha das Flores.

Encontrei a D. Maria, nascida em 1925, portanto, com 97 anos. Faladora e simpática, com alguma mágoa e com ar triste, disse-me que tinha saído por pouco tempo do lar onde está acolhida. Os filhos há muito que saíram da ilha. Vivera a sua vida confinada na ilha do Corvo e ia acabar os seus dias confinada no lar. A pensar nesta conversa, desci até ao porto, onde tomei um refrescante banho.

No dia seguinte, depois do pequeno-almoço, fui fazer o trilho da Lagoa do Caldeirão. Do alto, o tamanho da caldeira impressiona, na ilha mais pequena dos Açores! O tempo estava excelente! No início do trilho era apenas eu no meio de tanta beleza. Um verdadeiro espectáculo da natureza.

O caminho à volta da lagoa, composta por pequenos lagos, é ladeado de hortênsias azuis e, nesta altura do ano, bem viçosas. Aí pastavam pachorrentamente vacas, ovelhas e alguns cavalos alheios à beleza ímpar do lugar que é seu. No percurso de cerca de duas horas, rodeado de tanta beleza, o passar do tempo deixa de fazer sentido. Ficamos sem palavras no meio daquele espaço que foi um enorme vulcão, agora silencioso e adormecido.

Quando terminei o trilho, comecei a ver dezenas de turistas de todas as idades, mais ou menos apetrechados a iniciar a caminhada. Boa ideia ter ido cedinho.

No final, ainda tinha à minha espera uma caminhada do alto do Caldeirão até à Vila do Corvo, de cerca de hora e meia, sempre a descer, num trajecto muito bonito e cheio de hortênsias.

Apesar de ter tentado junto da associação dos bombeiros do Corvo e em casas particulares, não foi mesmo possível arranjar dormida para a última noite. A solução seria usar o saco-cama no parque de campismo. Não tinha tenda e reparei que na praia havia um pequeno buraco numa rocha, e que me pareceu bem acolhedor. O chão era de areia e tinha marcas do que pensei serem pegadas de gaivotas. Foi mesmo aí que coloquei o saco-cama. Senti-me por uns momentos o Robinson Crusoe. Nessa noite, tinha a vista mais bonita que alguém poderia ter na ilha. Fabuloso, o pôr de sol! A brisa que se fazia sentir, as estrelas num céu completamente límpido e as ondas do mar, foram a melhor companhia e o melhor embalo para dormir sossegadamente até à altura em que comecei a ouvir o canto típico dos cagarros que faziam voos rasantes ao meu “quarto”. A certa altura, um deles ganhou confiança, entrou e fez-me companhia. Percebi então que as pegadas que tinha visto não eram de gaivotas, mas sim dos cagarros. Eu estava a ocupar o lugar deles. Finalmente sossegaram e um deles acabou por dormir encostado ao meu saco-cama.

De manhã cedinho, a praia era minha!

Enquanto o sol nascia, tomei um excelente banho no mar de água tépida, onde se viam os peixinhos de várias formas e cores. A noite tinha sido longa e depois do pequeno-almoço no bar dos bombeiros fui tomar mais um banho bem junto ao porto. Aí, sim, encontrei já algumas pessoas.

A hora de almoçar aproximava-se. A oferta limita-se a um restaurante e ao bar dos bombeiros voluntários, este último apenas para fazer uma refeição ligeira. Optei pelo restaurante. Comi mero grelhado com legumes. Com um vinho fresco e com a ilha das Flores ao fundo, foi uma excelente refeição para terminar a minha passagem pelo Corvo.

Antes de entrar no avião que me traria até São Miguel subi de novo à Vila para lá do alto contemplar o mar e vieram-me à memória as palavras de Raúl Brandão, no livro As ilhas Desconhecidas: “A ilha é pobre e escalvada, o silêncio mete medo e o isolamento completo e fechado em roda pelo mar atormentado. Na verdade, eu não podia viver como estes homens, mas na hora da morte, queria ser um destes homens.”

Helder Taveira (texto e fotos), Ribeira Grande, Açores

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