O projeto político da SEDES

Roosevelt alertou em 1936: “O governo pelo dinheiro organizado é tão perigoso como o governo pelo crime organizado”.

Baseando-se na visão da sociedade que deseja construir, um projeto político define os objetivos e as políticas públicas necessárias para o concretizar. A SEDES, querendo ser “pragmática e não ideológica” não explicita o seu projeto político e estabelece como objetivo duplicar o PIB em 20 anos. Em que pressupostos se baseia?

Não há restrição climática

Imaginemos que muitos países tenham tanta ambição quanto a SEDES propõe que Portugal tenha; o PIB mundial poderia duplicar em 20 anos. Para a SEDES, a limitação dos recursos terrestres não deve ser obstáculo: Luís Mira Amaral estima implausível que o aquecimento global fique abaixo dos 3,5 ºC e propõe que Portugal renegoceie e não cumpra a redução de emissões de CO2 com que se comprometeu. “Os movimentos alarmistas climáticos atuais pretendem pôr em causa a economia de mercado”, escreveu Abel Mateus. A SEDES julgou então desnecessário enfrentar os trade-offs apontados pelo IPPC (International Panel on Climate Change):

Como dissociar crescimento económico e consumo energético? Como evoluirá o consumo de energia com a duplicação do PIB? Dá-se prioridade à diminuição das desigualdades ou à adaptação ecológica da agricultura? Assumindo que não se pede sobriedade no consumo aos mais pobres, como controlar o padrão de consumo dos mais ricos?

Importa é “criar um ambiente favorável a uma economia de mercado”

Insurgindo-se, e bem, contra os Estados-nação autocráticos, o liberalismo tem alimentado, nos últimos dois séculos, uma crescente fobia do Estado. Muitos consideram hoje que a principal função do Estado é garantir as liberdades individuais, presumindo que assim se atinge o bem comum. Não deve nem pode ser definido nenhum projeto coletivo; o bem comum resultará das escolhas individuais.

Ora, a ascensão do liberalismo foi acompanhada, no século XIX, por uma revolução institucional que muitos descuram: a criação da figura legal da sociedade (corporation), figura que permitiu processos de crescimento económico e de concentração do capital sem precedentes. O facto é que grande parte das decisões que moldam o presente são tomadas, não pelos Estados, não pelos cidadãos, mas por algumas corporations, empresas multinacionais mais poderosas que muitos Estados.

Cerca de 80% do comércio mundial consiste em transações intra-empresas, com preços administrados, fixados pelas multinacionais e não pelos mercados. O investimento produtivo está ao serviço da finança e os Estados concorrem entre eles em matéria fiscal, social e ecológica, para atrair o investimento.

Em vez de propor regular a privatização do mundo que este poder representa, a SEDES propõe abrir-lhe as portas mais ainda. Seriam assim os grupos empresariais a decidir como vão as tecnologias digitais modelar o mundo do trabalho, quais as funções deixadas ao SNS pelos hospitais privados, quais os transportes do futuro (veículos elétricos em vez de sistemas integrados de mobilidade), quais os grupos sociais que beneficiarão de pensões dignas e quais os que ficarão com pensões públicas reduzidíssimas, etc. Aliás, afirma-se que “aumentar o rendimento dos portugueses” é o principal objetivo mas não se fala em aumento dos salários…

Quem trata do bem comum?

A pandemia e a crise climática mostram, a quem quer ver, que o estado é indispensável para salvaguardar o bem comum – não serão os grupos empresariais a fazê-lo. Esse é o desafio político por enfrentar: conciliar a necessária construção do futuro com as liberdades individuais. Presumir, hoje, que haverá futuro sem que seja necessário construí-lo é aceitar que só os mais ricos, que compram terras nos países nórdicos como os chineses compram terras férteis em África, conseguirão escapar aos desastres climáticos.

Roosevelt alertou em 1936: “O governo pelo dinheiro organizado é tão perigoso como o governo pelo crime organizado” e leva ao fascismo. Múltiplos sinais indicam já que a fobia do estado se pode rapidamente transformar em apelos à autocracia.

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