A vida é uma plasticina

O cancro, como qualquer outra experiência que abala os alicerces da nossa estrutura, pode transformar, de um momento para o outro ou progressivamente, o modo como olhamos para a vida e a interpretamos.

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"A vida sob a realidade oncológica deixa cicatrizes" João da Silva

Não conheço ninguém que tenha passado pelo cancro sem se ter transformado. E não me refiro apenas à vertente física, que pode sofrer alterações temporárias ou permanentes, profundas ou leves – e casos há em que não acontecem quaisquer alterações físicas, pelo menos exteriores.

A minha afirmação inicial refere-se a transformações de ordem psicológica. Toda a gente que conheço que viveu um diagnóstico de cancro sentiu que a sua forma de olhar para a vida se modificou.

Quer isto dizer que o cancro, de uma maneira ou de outra, leva sempre a melhor? Não, quer dizer que o cancro, como qualquer outra experiência que abala os alicerces da nossa estrutura, pode transformar, de um momento para o outro ou progressivamente, o modo como olhamos para a vida e a interpretamos.

Quem vê a sua vida ameaçada – no caso do cancro, por tratar-se de uma proliferação anormal de células, a ameaça é interior, faz parte de nós, é uma auto-ameaça; haverá algo mais assustador do que vermo-nos atraiçoados por nós próprios? –, creio que não mais interpretará a realidade do jeito que fazia. Falo por experiência própria.

Recordo com minúcia como, a partir de dado momento, as cores de tudo à minha volta se tornaram cinzentas e negras. As cores, como é óbvio, estavam como sempre estiveram. O que mudou foi a minha interpretação. Conseguir, nos momentos de maior angústia e desespero, ver o mundo como ele é, ou seja, colorido, será, certamente, um dos maiores desafios com que o ser humano se pode deparar. Tenho conhecido diversas pessoas com histórias de grandes adversidades que o confirmam e são muitas as relatam exemplos de amplificação ou restrição da realidade como o que referi. Todas essas pessoas apresentam ainda um traço comum: as cicatrizes psicológicas que as trevas lhes deixaram.

A vida sob a realidade oncológica deixa cicatrizes. Cicatrizes que, mesmo parecendo absolutamente saradas, podem sangrar quando se lhes toca, mesmo que ao de leve.

Um exemplo pessoal: o cheiro da enfermaria do IPO de Lisboa. A mais leve recordação deste local basta para lhe sentir o cheiro – o sentido do odor, o mais forte dos nossos sentidos, está intrinsecamente ligado às recordações e sensações do ser humano. Não é um cheiro a sujo, a podre ou algo do género. Também não é um cheiro a perfume (salvo quando alguma visita exagerava na esguichadela). É um cheiro específico, diferente de tudo o que já senti, mas que não sei definir. Sei apenas que permanece na minha biblioteca de odores desde a primeira vez que o cheirei.

Guardo uma memória vívida desse dia. Um dia mau. Caminhei pela primeira vez pelo corredor até à enfermaria onde ia ficar hospedado e deparei-me com grande alvoroço de enfermeiros e médicos em torno de um homem desmaiado. As cortinas em redor da cama foram fechadas e várias vozes chamavam insistentemente pelo senhor Silva. Fez-se silêncio. Temi o pior. Sustive a respiração, desejando com todas as minhas forças e desespero que tudo estivesse bem. Segundos depois, um dos médicos descerrou calmamente as cortinas e sorriu para mim. Voltei a respirar ao ver os gigantescos olhos azuis do senhor Silva que coloriam de vida e de luz aquele dia cinzento.

Nessa madrugada, tive medo de dormir e de perder-me dos olhos azuis do senhor Silva, as minhas lanternas-guia naquela noite tão escura. Assisti a cada segundo do seu sofrimento enquanto uma enfermeira tentava canalizar-lhe uma veia. De vez em quando, o senhor Silva franzia ligeiramente os lábios, segurando gemidos de dor. A certa altura, a enfermeira brincou comigo: “Eu já aí vou ter consigo para lhe fazer esta maldade!” Eu não conseguia brincar. E o meu rosto deve ter transparecido um tal terror que o senhor Silva sorriu para mim. E assim permaneceu durante largos minutos até que a enfermeira, já exausta, disse: “Já está, esta foi difícil. Portou-se muito bem!”

Nesse momento, as lágrimas corriam-me pelo rosto e o senhor Silva disse alguma coisa, mas a voz saiu-lhe muito baixinha e não percebi o que era. Fiz um gesto a pedir que repetisse e ele fê-lo, mas continuei sem perceber. “Ele está a dizer que isto não custa nada”, reproduziu a enfermeira. Era mentira. Eu sei que custava.

Que custa. Arrepia-me pensar neste gesto. Quase a desmaiar de dor, aquele homem, quase sem força para respirar, e que não me conhecia de parte alguma, procurou, sorrindo, amenizar a minha ansiedade desvalorizando o que sentia. Isto quando o mais sensato seria guardar qualquer réstia de energia para respirar e manter-se vivo. Um exemplo de dignidade, empatia e humanidade que recordo em inúmeras ocasiões – sempre com o cheiro da enfermaria debaixo do nariz.

No início de junho, participei como orador no I Congresso Internacional - Cuidar em Oncologia, realizado no Instituto Politécnico de Bragança. Antes da minha intervenção, assisti à conferência “Cuidar com os saberes do corpo e das artes: as histórias visuais de resistentes da doença oncológica”, apresentada por Susana de Noronha, antropóloga e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC).

A preleção de Susana baseia-se, em parte, na sua tese de doutoramento, Objetos Feitos de Cancro: mulheres, cultura material e doença nas estórias da arte, posteriormente transformada num livro (2015, Edições Almedina). Trata-se de uma profunda reflexão “em torno dos objetos e materialidades que ganham forma e relevo em projetos artísticos referentes à experiência feminina do cancro” e que propõe «conceitos alternativos de cultura material e doença oncológica”.

A autora rejeita qualquer separação “entre dimensões materiais e intangíveis na doença, entendendo os objetos de cultura material como pedaços de cancro, ou seja, enquanto partes constitutivas das ideias, sensações, emoções e gestos que fazem a experiência do corpo doente”. A obra, ilustrada, expõe diversos objetos – hospitalares, domésticos, pessoais, de uso coletivo ou individual – que se encaixam nas “experiências do corpo em diagnóstico, internamento, tratamento, reconstrução, remissão, recorrência, metastização e morte”.

Susana de Noronha procura ainda compreender “a forma como a doença oncológica (re)faz os objetos, dos sentidos às experiências que construímos com e sobre os mesmos”. Dificilmente não nos emocionamos com os exemplos revelados de expressão artística nas mais diversas áreas: fotografia, pintura e desenho, escultura, costura, tricô, entre outras, que “servem de terreno narrativo e visual” permitindo desvendar a perspetiva do autor no encaixe entre cultura material e doença.

Abandonei por momentos a leitura de Objetos Feitos de Cancro para procurar a plasticina da minha filha. Peguei num pedaço de plasticina azul e moldei um nariz. Não ficou perfeito. O original em que me inspirei também não o é. Depois de observar a peça durante algum tempo, deixei-a por ali, esperançoso num comentário abonatório do género “olha, é um nariz!”. Não aconteceu.

Horas depois, o pedaço de plasticina azul foi transformado numa minhoca por um par de pequenas mãos – as mãos, ferramentas de eleição da criança para desenvolver a consciência de si mesma e do mundo que a rodeia. Talvez devêssemos todos brincar com plasticina de vez em quando.

Enquanto escrevia este texto, reli partes de um dos meus livros preferidos. É pertinente a partilha: “Há um poder de convicção no perfume que é mais forte do que palavras, do que olhar, sentimento e vontade. O poder de convicção do aroma não pode ser descartado, entra dentro de nós como o ar nos nossos pulmões, toma-nos completamente, não há antídoto contra ele (…) Pois as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e poderiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é irmão da respiração. Com esta, ele penetra nas pessoas, e elas não podem escapar-lhe caso queiram viver”, escreveu Patrick Süskind, no seu maravilhoso O Perfume.

Se ainda não leu esta obra, recomendo que se deixe levar o quanto antes pela mão de Süskind numa extraordinária e intrigante viagem pelo mundo dos odores.

Embrenhado no cheiro a café acabado de fazer, viajo mentalmente até à enfermaria do IPO. O cheiro indefinível mistura-se com o do café, relembrando o pequeno-almoço servido na cama por senhoras simpáticas e bem-dispostas. E então percebo. A enfermaria cheira a doença, tristeza, sofrimento, medo e morte. Mas também cheira a dedicação, luta, resiliência, esperança e amor. A vida nos seus contrastes, moldável como a plasticina.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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