Gladys Kalema-Zikusoka: “Para proteger os gorilas, temos de cuidar da saúde das pessoas também”

Gladys Kalema-Zikusoka quer melhorar a saúde dos gorilas no Uganda melhorando também a vida das populações que circundam a reserva ecológica. “Está tudo interligado”, diz a veterinária distinguida este ano com a Medalha de Edimburgo.

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Kalema-Zikusoka quer melhorar o bem-estar dos gorilas no Uganda melhorando também a vida das populações que circundam a reserva ecológica Kibuuka Mukisa/DR
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Gladys Kalema-Zikusoka foi a primeira veterinária contratada pela Autoridade do Uganda para a Vida Selvagem Kibuuka Mukisa/DR
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Kalema-Zikusoka foi distinguida este ano com a Medalha de Edimburgo Kibuuka Mukisa/DR

Gladys Kalema-Zikusoka foi a primeira veterinária contratada pela Autoridade do Uganda para a Vida Selvagem. Quando chegou às reservas onde vivem os gorilas, em 1994, havia só 650 destes animais. Hoje há mais de mil. Esta evolução deveu-se ao facto de a veterinária cuidar não só dos primatas, mas também das pessoas.

Entusiasta da abordagem “uma só saúde”, Kalema-Zikusoka quer melhorar o bem-estar dos gorilas no Uganda melhorando também a vida das populações que circundam a reserva ecológica. Na sua opinião, está tudo interligado. Se as comunidades não têm dinheiro, terão também piores hábitos de higiene, apelarão à caça furtiva e à destruição da floresta como meio de subsistência. A saúde dos animais depende da saúde humana e ambiental. Tudo é uma coisa só, garante.

As doenças humanas podem ser transmitidas aos gorilas porque estes saem muitas vezes dos parques no Uganda. “Perderam o medo das pessoas”, diz Kalema-Zikusoka, distinguida este ano com a Medalha de Edimburgo. Em Dezembro de 2021, recebeu o prémio Champions of Earth na área da ciência e inovação, um galardão do Programa das Nações Unidas para o Ambiente.

Fundou e dirige a iniciativa Conservação Através da Saúde Pública, onde lidera programas estratégicos em articulação com a comunidade local. Nesta entrevista ao PÚBLICO, realizada por videoconferência a partir do Uganda, Gladys Kalema-Zikusoka explica como conseguiu integrar a saúde pública nos programas de conservação e, ao mesmo tempo, apoiar a actividade económica dos cafeicultores locais para mitigar a caça furtiva.

Fundou o projecto Conservação Através da Saúde Pública (CTPH), que promove programas que tratam a saúde humana, animal e do ambiente como “uma só saúde”. Quando percebeu que a conservação e a saúde pública são áreas indissociáveis?
Um dos primeiros casos com que tive que lidar aqui, quando criei a unidade veterinária na Autoridade do Uganda para a Vida Selvagem, consistia em gorilas que contraíram sarna. Esta doença de pele levou a que perdessem cabelo, ficando com a pele esbranquiçada, escamosa e com bastante comichão. Um bebé gorila perdeu três quartos do pêlo e acabou por morrer. Conseguimos que os demais animais recuperassem, após um tratamento com ivermectina. Quatro anos depois, houve um novo surto numa outra parte do parque. Foi então que percebemos que estas situações resultavam do facto de a população humana local ter problemas de saúde.

Os gorilas apanharam sarna porque passam muito tempo fora dos parques, com as comunidades. Eles perderam o medo das pessoas. Isto acontece porque, quando voltam para os espaços onde viviam antes de a floresta ser cortada, encontram pessoas. Os gorilas apreciam bananas e cascas de eucalipto e eles encontram estes alimentos nas comunidades. Quando percebemos que a sarna vinha do contacto com a população, ficou claro que não bastava cuidar da saúde dos gorilas – era preciso melhorar a saúde das pessoas também. Está tudo interligado.

Como é que uma unidade veterinária conseguiu promover a saúde pública?
Nós fizemos workshops com a comunidade. Alguns anos após os surtos de sarna, foram eles que me pediram para liderar esta iniciativa. Foi um ponto de viragem na minha vida. Quando nos fomos encontrar com eles e dissemos qual era o problema – as pessoas a transmitir doenças aos gorilas –, os próprios habitantes apresentaram soluções muito boas. Nessa altura, já estavam a começar a gostar dos gorilas: viam os turistas a chegar, os filhos a conseguir emprego, a vender artesanato, hospedagem, alimentação.

Quais foram as soluções apresentadas?
Cheguei ao encontro com eles a pensar que tinha a solução, que consistia em educá-los, conversar com eles sobre ser mais saudável através de hábitos de higiene. Expliquei que o contacto com as pessoas deixava muitas vezes os gorilas doentes. Referi que estes animais são muito curiosos e que provavelmente tocavam nas roupas – e infelizmente a higiene é limitada. Estava prestes a apresentar a minha solução quando os guardas florestais e os assistentes de saúde distritais me tocaram na mão e disseram: “Deixe-os falar e encontrar soluções.”

E muitos deles queriam que os serviços [de saúde] fossem trazidos para mais perto deles. A comunidade está a 32 quilómetros do centro de saúde mais próximo. Não há transportes públicos. Se alguém está muito doente, eles são obrigados a transportá-lo numa maca até ao posto de saúde. É assim que costumava ser. Agora, vemos a saúde dos gorilas, das pessoas e da floresta como uma só saúde. Tantas pessoas estavam realmente a morrer com doenças que se poderia prevenir. E esses mesmos problemas espalharam-se para os grandes símios, gorilas e chimpanzés.

É curioso como as melhores soluções costumam emergir da própria comunidade afectada.
Sim. Também surgiu a ideia de haver rangers no parque, assim como guardiães de gorilas. Mandámos fazer lindas camisas azuis [para esta actividade]. Eles disseram que queriam que fosse uma actividade contínua, mas que precisariam de rações de comida e botas de borracha para desempenhar melhor o trabalho. A ideia era haver pessoas que trouxessem os gorilas de volta sempre que deixassem o parque e fossem para as comunidades. Todos viam a ideia dos guardiães com bons olhos porque havia experiências de gorilas a devorar colheitas, ou o caso de um animal ter arranhado alguém e a comunidade ter ficado aborrecida.

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Quando a veterinária chegou às reservas onde vivem os gorilas, em 1994, havia só 650 destes animais: hoje há mais de mil Kibuuka Mukisa/DR

Como é que a equipa de guardiães de gorilas funciona?
Quando os gorilas saem do parque, os guardiães fazem uma fila e trazem os animais de volta fazendo barulhos e vocalizações. O objectivo é manter os gorilas longe da comunidade. Então, em cada aldeia, quando os gorilas saem do parque há um grupo de homens para os fazer regressar.

Só homens podem ser guardiães?
Actualmente, só temos homens. Estou a tentar fazer com que os grupos tenham algumas mulheres também, mas ainda não aceitaram. Mas há um grupo de homens que são voluntários, e que ajudam os guardas florestais a trazer os gorilas de volta. Os guardas não podem estar em todos os lugares e, além disso, pensamos que as pessoas que trazem os gorilas de volta não devem ser as mesmas que cuidam deles, ou seja, que os gorilas vêem todos os dias. Porque eles receberiam sinais contraditórios, são animais muito inteligentes. Os guardiães têm de ser pessoas exteriores ao parque [para que fique clara a ideia do que está dentro e fora do limite seguro]. Foi com base neste pensamento que decidimos em conjunto que os guardiães apoiariam os rangers, mas não seriam funcionários contratados. Os rangers desempenham funções diferentes e em moldes distintos. No entanto, os guardiães estão treinados para recolher amostras de fezes de gorilas nas terras das comunidades. Este aspecto é importante porque é precisamente nas aldeias que os animais são mais propensos a contrair doenças.

O que nos podem dizer as fezes dos gorilas acerca do que comem e do estado de saúde?
Examinamos todos os meses as fezes de gorilas, mas só daqueles que estão habituados – ou seja, daqueles que nos podemos aproximar e fazer uma monitorização diária. Metade dos gorilas no Parque Nacional de Bwindi está habituada, metade não. Através destes testes podemos verificar a presença de parasitas, bactérias e, mais recentemente, vírus como o da covid. Costumamos recolher amostras nos ninhos – pode parecer estranho, mas os gorilas fazem todas as noites uma espécie de cama com galhos e folhas. A partir dos cinco anos, um gorila já é capaz de construir o seu próprio “colchão” para dormir. Quando se levantam pela manhã, defecam no ninho. E é aqui que podemos reolher amostras e descobrir como está a saúde destes animais. Também é possível recolher amostras enquanto os seguimos nos trilhos. Se uma amostra revela um resultado anormal, aí passamos a recolher outras com maior regularidade.

Ajudou a criar a marca de café Gorilla Conservation Coffee. Como surgiu esta ideia?
Começámos com a melhoria da saúde dos gorilas: montámos um laboratório no nosso Centro de Conservação e Saúde Comunitária, onde analisamos amostras não só dos gorilas, mas às vezes também de pessoas e até gado. Se encontramos uma zona onde há muitos parasitas, tentamos tratar todos os afectados. A segunda etapa foi a parte de comunicação de saúde, tendo como objectivo a mudança de certos comportamentos: estimular a lavagem das mãos, garantir estações com água para que este hábito seja consolidado, desencorajar que se deixe matéria fecal exposta nos jardins. Quanto mais ouvíamos as pessoas, mais percebíamos que, de facto, a muitas pessoas da comunidade faltava boa saúde não apenas por serem pobres. Precisávamos de as ajudar a melhorar os meios de subsistência. Havia várias organizações não governamentais a trabalhar nesse domínio, mas nenhuma se dedicava aos agricultores de café que fazem fronteira com o parque.

Como é que a venda de um produto agrícola apoia a conservação de uma reserva florestal?
Descobrimos que os agricultores não estavam a conseguir um bom preço pelo café. E, por isso, eles continuavam a entrar na floresta caçar animais. Tinham fome. Queriam comprar carne, mas não tinham dinheiro. Na prática, continuavam a depender da floresta para atender necessidades básicas, uma vez que não obtinham um preço justo pelo café que produziam. Então, o meu marido teve a ideia de desenvolvermos uma marca global de café que pudesse salvar os gorilas. Acabámos por adicionar esta valência aos nossos programas comunitários. Contratámos agrónomos e treinámos a comunidade para melhorar ainda mais o café – estamos a grande altitude, temos as condições perfeitas para um excelente arábica.

O produto foi classificado entre os melhores na Califórnia pela Coffee Review. É um café delicioso! Assim, os produtores são recompensados, uma vez que concedemos 50 centavos adicionais por quilo sobre o valor de mercado. É como um prémio de conservação, se é que se pode chamar assim. Compreenderam que é o parque que valoriza a marca do café que vendem e, por isso, tornam-se aliados na conservação. No passado alguns deles poderiam ser designados caçadores furtivos. Pessoas que costumavam caçar furtivamente e pararam porque o café os mantém fora do parque.

Quantos cafeicultores participam no projecto?
Temos mais de 500 agricultores. O único problema é que não se consegue comprar todo o café produzido. O parque não tem dinheiro suficiente. Só adquirimos cerca de um terço. Estamos a tentar encontrar soluções para escoar a produção excedente, estive recentemente em Itália para tentar integrar um programa que nos ajude a ampliar o mercado para o café. Comprar o nosso café é fornecer financiamento sustentável para a conservação e a saúde pública. Pensamos que será um bom complemento do turismo ecológico. Hoje a maioria dos clientes são turistas que vêm ao Uganda para visitar os gorilas. Precisamos agora de chegar a mais pessoas.

Começou preocupada com a saúde dos gorilas, depois percebeu que teria de cuidar das pessoas também. Acabou por concluir que a subsistência da comunidade também importa. O que é que agora a mantém acordada à noite?
É uma pergunta difícil. Muitas coisas mantêm-me acordada. Preocupamo-nos não só para que os gorilas estejam bem protegidos, mas também que os números continuem a crescer. E que haja um ecossistema saudável capaz de receber estes grupos maiores de animais. Há espaço suficiente para eles? Temos capacidade para crescer? Por exemplo, o número de gorilas aumentou desde que comecei a trabalhar com eles. Passaram de cerca de 650 em 1994 para mais de 1000 agora. É uma boa notícia, mas o espaço está a esgotar-se tanto nos parques no Uganda como no Ruanda. Começamos a questionar se as pessoas estão dispostas a vender terras para expandir o parque.

Outra coisa que me tira o sono é a pandemia, as novas variantes. Como os gorilas reagiriam? Não sabemos. Os turistas estão ansiosos para voltar. Muitos seguem as regras, mas outros não. O que devemos fazer sobre isso? Portanto, são os esforços de conservação que me mantêm acordada à noite. São uma pequena parte da luta contra uma degradação ambiental muito maior e que contribui para a crise climática que enfrentamos.

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A iniciativa Conservação Através da Saúde Pública aposta na protecção dos gorilas em articulação com as comunidades locais Kibuuka Mukisa/DR