Egipto

Violência sexual: Lina retratou mulheres que não têm vergonha de terem sobrevivido

A fotógrafa egípcia Lina Geoushy retrata mulheres que sofreram episódios de assédio ou abuso sexual no Cairo, Egipto, onde 99,3% afirma já ter sido vítima destes tipos de crime. "Eu era demasiado nova, não soube processar [o abuso] (...) Nunca me sinto segura, agora, nem mesmo na minha casa", pode ler-se num dos testemunhos que recolheu para Shame Less: A Protest Against Sexual Violence, ainda em desenvolvimento.

©Lina Geoushy
Fotogaleria
©Lina Geoushy

Quantas mulheres já caminharam na rua e ouviram insinuações de cariz sexual inapropriadas? Quantas já tiveram partes íntimas dos seus corpos tocados sem o seu consentimento? Quantas já assistiram, sem quererem, a actos sexualmente exibicionistas? Quantas já tiveram relações físicas de intimidade sem que realmente as desejassem, sob pressão do seu parceiro?

As muitas mulheres que partilharam com a fotógrafa Lina Geoushy as suas histórias de assédio e abuso sexuais escolheram, na sua maioria, manter o anonimato. "Porque é mais seguro para elas e porque o tema é sensível", explicou. Nenhuma especificou se correria perigo revelando a identidade, ou se sofreria represálias.

"Quando algo acontece a uma mulher, no Egipto ou mesmo no Reino Unido, as pessoas tendem a criticar o seu comportamento, as suas roupas, onde estava e a que horas", contou Lina ao P3, em entrevista a partir de Londres, onde reside há um ano. "Culpar e envergonhar a vítima é abusivo; as pessoas deveriam, em vez disso, direccionar a sua atenção para o perpetrador." 

O projecto Shame Less: A Protest Against Sexual Violence, recentemente distinguido pelo prémio Female in Focus, foi criado pela egípcia com o objectivo de trazer luz sobre este tipo de crime. "Pretendo descortinar os vários factores e cenários relacionados com este tipo de violência, quando tem por base o género", pode ler-se no site da autora. Quer "expor as nuances das mundividências e dos contextos que culminam no desligamento, normalização e permissividade relativamente a este tipo de violência".

Lina Geoushy deu início ao projecto em Dezembro de 2020, no seguimento do estalar mediático do caso Fairmont, que levou o movimento #MeToo até ao Egipto. O caso, que só foi conhecido em Julho de 2020, embora tenha ocorrido em Abril de 2014, diz respeito a uma violação em grupo perpetrada por nove jovens rapazes, com recurso a GHB, conhecida como a "droga da violação". "Para muitas mulheres [egípcias], o caso reacendeu um trauma colectivo", explicou Lina à plataforma WePresent. "As pessoas começaram a partilhar as suas histórias nas redes sociais, revelando a magnitude do problema."

De acordo com um relatório publicado, em 2013, pelas Nações Unidas, 99,3% das mulheres residentes na capital egípcia já tinham experienciado assédio sexual ao longo da vida; 82,6% afirmou não se sentir segura em lugares públicos. Lina, que foi sujeita a violência sexual nas ruas de Cairo, diz-se "enraivecida pela normalização do problema e pelo trauma perpétuo gravado na mente de todas". 

"Este tipo de crime acontece em todos os lugares, nos locais de trabalho, em casa, nas ruas, e se as mulheres os reportam são responsabilizadas, culpadas, ameaçadas, humilhadas e convidadas a reinterpretar o que lhes aconteceu até serem silenciadas." Cansada, uma das mulheres retratadas por Lina Geoushy desabafou que "é impossível pensar que, algum dia, uma mulher que viva no Egipto possa andar nas ruas sem ser verbalmente assediada".

A egípcia corrobora. "A forma mais comum de assédio é verbal, sob forma de piropo ou insinuação de cariz sexual. Também é frequente o abuso físico em transportes públicos, assim como a violação em contexto conjugal e, mais recentemente, o femicídio." No Egipto, sublinha, as mulheres podem trabalhar, estudar, praticar desporto, "mas a violência contra elas está entranhada no interior das casas e nas ruas". A cultura egípcia, evidencia, é "extremamente patriarcal".

Em Dezembro de 2020, determinada a chamar a atenção para o flagelo, a fotógrafa publicou um apelo através do Instagram. "Lancei um convite a pedir a participação num projecto sobre mulheres que sofreram violência sexual em espaços públicos e privados, no Cairo", relata. "Encontrei-me com as participantes um par de vezes e conversei longamente com elas antes de as fotografar."

Lina sentiu, desde o início, que um retrato fotográfico clássico não faria justiça às histórias e memórias que cada mulher carrega consigo e optou por "colocar sobre as imagens os textos manuscritos por cada uma". "E uma máscara dourada sobre os rostos, que protege a identidade da vítima, valorizando, ao mesmo tempo, o seu testemunho." A egípcia considera o diálogo entre a fotografia e o texto "essencial" no projecto que continua em desenvolvimento. "Só assim se pode navegar uma problemática tão traumática e endémica", justifica.

A série de imagens, que é apenas um primeiro capítulo de outras que se seguirão, inclui um auto-retrato (imagem número quatro desta fotogaleria), através do qual partilha também a sua história. "Inicialmente, não queria integrar o projecto, mas conhecer outras mulheres com histórias de assédio e abuso sexuais fortaleceu-me, fez-me sentir menos sozinha." Por isso, vai continuar.

Por ora, não conseguiu ainda mostrar o projecto no país onde nasceu e cresceu. "Não é um tema ou um um corpo de trabalho sobre o qual as pessoas queiram discutir, no Egipto. Mais a ocidente é muito bem recebido." Foi mostrado no Festival de Fotografia de Atenas, no início do ano, será exibido no museu Foam, nos Países Baixos, em Setembro, e em Ladnskrona, na Suécia. "É importante protestar contra a violência sexual, contra a culpabilização e humilhação das vítimas. Não podemos mais aceitar sentir vergonha."

"Pagando o Táxi". Eu estava na rua, dobrada sobre a janela de um táxi enquanto preparava o pagamento. Um homem que passou tocou-me no rabo com o dedo. Eu explodi em lágrimas e voltei para casa em silêncio."
"Pagando o Táxi". Eu estava na rua, dobrada sobre a janela de um táxi enquanto preparava o pagamento. Um homem que passou tocou-me no rabo com o dedo. Eu explodi em lágrimas e voltei para casa em silêncio." ©Lina Geoushy
"Um Homem com a sua Filha". "Quando andava na universidade, caminhava, durante a tarde, em direcção à estação e comboio com uma amiga. Um homem velho que ia a passar com a sua filha pequena chocou contra mim e agarrou o meu peito. Em vez de nos apoiarem, as pessoas na rua começaram a dizer-nos para o deixarmos ir, que estávamos a ser mal-educadas."
"Um Homem com a sua Filha". "Quando andava na universidade, caminhava, durante a tarde, em direcção à estação e comboio com uma amiga. Um homem velho que ia a passar com a sua filha pequena chocou contra mim e agarrou o meu peito. Em vez de nos apoiarem, as pessoas na rua começaram a dizer-nos para o deixarmos ir, que estávamos a ser mal-educadas." ©Lina Geoushy
"Na Minha Casa de Infância“. "Eu tinha dez ou 11 anos quando isto começou a acontecer. O meu primo, que é dez anos mais velho do que eu, vivia connosco. Ele tocava-me de forma inapropriada ocasionalmente quando a minha mãe e irmãos não estavam por perto. Eu acordava a meio da noite e encontrava-o na minha cama, deitado ao meu lado, a tocar-me com o pénis. Assim que eu acordava, ele fugia. Eu era demasiado nova, não soube processar isso. Sentia-me assustada e revoltada. Nunca me sinto segura, agora, nem mesmo na minha casa. O mais difícil foi a reacção dos meus pais - ou a falta dela. Senti que não era importante, nem mesmo para a minha família."
"Na Minha Casa de Infância“. "Eu tinha dez ou 11 anos quando isto começou a acontecer. O meu primo, que é dez anos mais velho do que eu, vivia connosco. Ele tocava-me de forma inapropriada ocasionalmente quando a minha mãe e irmãos não estavam por perto. Eu acordava a meio da noite e encontrava-o na minha cama, deitado ao meu lado, a tocar-me com o pénis. Assim que eu acordava, ele fugia. Eu era demasiado nova, não soube processar isso. Sentia-me assustada e revoltada. Nunca me sinto segura, agora, nem mesmo na minha casa. O mais difícil foi a reacção dos meus pais - ou a falta dela. Senti que não era importante, nem mesmo para a minha família." ©Lina Geoushy
"No meu casamento". "As relações de intimidade são privadas e devem basear-se em amor e sentimentos mútuos. No entanto, o meu ex-marido não tinha em consideração os sentimentos ou os preliminares que as precedem. Eu costumava estar a dormir quando ele tirava as minhas roupas e começava a ter relações como se estivesse a violar-me. Odiava relações sexuais e de intimidade porque fiquei emocional e fisicamente magoada. Costumava tremer e até ter febre em resultado da pressão psicológica e emocional. Tudo aquilo era desprovido de sentimentos e acontecia contra a minha vontade."
"No meu casamento". "As relações de intimidade são privadas e devem basear-se em amor e sentimentos mútuos. No entanto, o meu ex-marido não tinha em consideração os sentimentos ou os preliminares que as precedem. Eu costumava estar a dormir quando ele tirava as minhas roupas e começava a ter relações como se estivesse a violar-me. Odiava relações sexuais e de intimidade porque fiquei emocional e fisicamente magoada. Costumava tremer e até ter febre em resultado da pressão psicológica e emocional. Tudo aquilo era desprovido de sentimentos e acontecia contra a minha vontade." ©Lina Geoushy
"Perseguir na Rua". "Quando eu estava a caminhar através de uma longa rua, um homem na casa dos 50 começou a seguir-me, durante um largo período, fazendo gestos para eu entrar no seu carro. Eu fiquei com medo e atravessei para o outro lado da rua. Ele deu a volta e continuou a seguir-me, dizendo 'entra e eu vou satisfaze-te, vou dar-te o que tu queres'. Com medo que ele se aproximasse, tentei afastar-me do carro o mais possível para o interior do passeio."
"Perseguir na Rua". "Quando eu estava a caminhar através de uma longa rua, um homem na casa dos 50 começou a seguir-me, durante um largo período, fazendo gestos para eu entrar no seu carro. Eu fiquei com medo e atravessei para o outro lado da rua. Ele deu a volta e continuou a seguir-me, dizendo 'entra e eu vou satisfaze-te, vou dar-te o que tu queres'. Com medo que ele se aproximasse, tentei afastar-me do carro o mais possível para o interior do passeio." ©Lina Geoushy
"Fugindo de um Uber". "Num dia como muitos outros, chamei um Uber para mim e para uma amiga, para sairmos. Enquanto estivemos com o condutor, dentro do carro, comecei a notar diferenças no movimento das suas mãos e pernas, eram estranhos e muito anormais. Comecei a ficar preocupada e com medo, então enviei mensagem à minha amiga no Whatsapp porque ela não se tinha apercebido. Escrevi-lhe dizendo que queria sair. Ela ficou preocupada e a tremer quando olhou para ele e percebeu que ele tinha aberto o botão das calças e se tocava de forma muito inapropriada. Eu deveria sentir-me mais segura do que isto. Nunca ninguém deveria sentir este medo e vergonha."
"Fugindo de um Uber". "Num dia como muitos outros, chamei um Uber para mim e para uma amiga, para sairmos. Enquanto estivemos com o condutor, dentro do carro, comecei a notar diferenças no movimento das suas mãos e pernas, eram estranhos e muito anormais. Comecei a ficar preocupada e com medo, então enviei mensagem à minha amiga no Whatsapp porque ela não se tinha apercebido. Escrevi-lhe dizendo que queria sair. Ela ficou preocupada e a tremer quando olhou para ele e percebeu que ele tinha aberto o botão das calças e se tocava de forma muito inapropriada. Eu deveria sentir-me mais segura do que isto. Nunca ninguém deveria sentir este medo e vergonha." ©Lina Geoushy
"A Caminho de Casa". Um homem na rua caminhou na minha direcção e agarrou a minha vagina. Eu congelei e continuei a andar."
"A Caminho de Casa". Um homem na rua caminhou na minha direcção e agarrou a minha vagina. Eu congelei e continuei a andar." ©Lina Geoushy
"Transporte Público". "Hoje tenho 64 anos, mas quando frequentava a universidade vivia num hostel. No final de cada semana, costumava visitar a casa dos meus avós. Um dia, na viagem de regresso, entrei num autocarro cheio de gente. Um dos homens que lá estava começou a aproximar-se de mim e a encostar-se. Senti que algo anormal estava a acontecer. Senti-me envergonhada."
"Transporte Público". "Hoje tenho 64 anos, mas quando frequentava a universidade vivia num hostel. No final de cada semana, costumava visitar a casa dos meus avós. Um dia, na viagem de regresso, entrei num autocarro cheio de gente. Um dos homens que lá estava começou a aproximar-se de mim e a encostar-se. Senti que algo anormal estava a acontecer. Senti-me envergonhada." ©Lina Geoushy
"A Conduzir o Meu Carro". Quando conduzia o meu carro na Praça Sphinx, um condutor de microbus começou a atravessar-se no meu caminho e a dizer 'vem cá, que eu tomo conta de ti'. Saíu do veículo e começou a bater na porta do meu carro com as mãos, de forma agressiva. Eu continuei a conduzir até que vi um polícia. Parei o carro junto dele e disse ao homem 'vem cá agora'. Ele ficou com medo da polícia e seguiu caminho."
"A Conduzir o Meu Carro". Quando conduzia o meu carro na Praça Sphinx, um condutor de microbus começou a atravessar-se no meu caminho e a dizer 'vem cá, que eu tomo conta de ti'. Saíu do veículo e começou a bater na porta do meu carro com as mãos, de forma agressiva. Eu continuei a conduzir até que vi um polícia. Parei o carro junto dele e disse ao homem 'vem cá agora'. Ele ficou com medo da polícia e seguiu caminho." ©Lina Geoushy
"No Meu Bairro de Expats". "Um homem achou que era boa ideia começar a assediar-me. Para ser honesta, já não penso muito no assunto. Virei a página e segui com a minha vida. Mas algo mudou. Estou mais alerta e confio menos nas pessoas. Lembro-me de o meu pai dizer 'pensa no pior e irás acertar'. Nunca gostei dessa frase, mas agora encaro-a como um conselho para cuidar de mim. A verdade é que não quero ser a pessoa que vive em estado de alerta e não confia nas pessoas, quero o oposto. Quero poder confiar, sentir-me segura, sentir que o meu corpo está em segurança e que se basta a si mesmo para proteger-se. Mereço segurança e paz."
"No Meu Bairro de Expats". "Um homem achou que era boa ideia começar a assediar-me. Para ser honesta, já não penso muito no assunto. Virei a página e segui com a minha vida. Mas algo mudou. Estou mais alerta e confio menos nas pessoas. Lembro-me de o meu pai dizer 'pensa no pior e irás acertar'. Nunca gostei dessa frase, mas agora encaro-a como um conselho para cuidar de mim. A verdade é que não quero ser a pessoa que vive em estado de alerta e não confia nas pessoas, quero o oposto. Quero poder confiar, sentir-me segura, sentir que o meu corpo está em segurança e que se basta a si mesmo para proteger-se. Mereço segurança e paz." ©Lina Geoushy
"Na Rua". "Eu saía do carro da minha irmã, junto à nossa casa, onde estava um grupo de rapazes a conviver. A minha irmã não tinha o seu véu na altura, tinha madeixas no cabelo e usava um vestido. Eu tive medo que eles começassem a importuná-la. Para minha surpresa, eles começaram a chamar-me nome e a fazer troça das minhas roupas conservadoras. Fizeram uma grande algazarra, gritando e batendo palmas."
"Na Rua". "Eu saía do carro da minha irmã, junto à nossa casa, onde estava um grupo de rapazes a conviver. A minha irmã não tinha o seu véu na altura, tinha madeixas no cabelo e usava um vestido. Eu tive medo que eles começassem a importuná-la. Para minha surpresa, eles começaram a chamar-me nome e a fazer troça das minhas roupas conservadoras. Fizeram uma grande algazarra, gritando e batendo palmas." ©Lina Geoushy