Ana Luísa Amaral, a grande Ana Luísa

Era impossível não se gostar da Ana Luísa, não pressentir de imediato o ser humano raro que ela era. É esta mesma pessoa que está nos poemas que escreveu, íntegra, completa e verdadeira. Pelo muito imaginar.

Em nossa casa chamávamos-lhe Grande Ana Luísa – porque temos uma filha com o mesmo nome, a quem podíamos chamar “Ana Luísa pequena” quando era preciso distinguir uma da outra. Mas, sem precisarmos de o dizer, todos soubemos sempre que não era esta a razão mais verdadeira: chamávamos-lhe Grande Ana Luísa porque lhe conhecíamos por extenso a grandeza de alma, no avesso de qualquer forma de mesquinhez. Uma grandeza toda feita de bondade, inteligência e sensibilidade, em doses variáveis conforme se fazia mais preciso. E sempre certas por isso mesmo, por poderem variar nas percentagens, sem rigidez nenhuma.

“– Telefonou a Ana Luísa. – Qual delas? A Grande?”. E agora, só ausência, este silêncio frio que não pára de crescer. Uma tristeza infinita. Porque nos conhecíamos desde os dezoito anos, de nos termos encontrado como alunas de uma cadeira de psicolinguística que ambas escolhêramos por pura curiosidade acerca das palavras e do que de nós transportam em suas enigmáticas tessituras. Não éramos do mesmo curso, pelo que a nossa amizade nasceu desse acaso que encontrou razão de ser nas coisas que nos interessavam, nos interessariam sempre. Depois, trabalhámos juntas muitos anos, na mesma faculdade, muitas vezes até altas horas, como boas noctívagas que éramos. Por exemplo, quando se tratou de criar um centro de investigação e tudo nesse campo estava ainda por fazer. Mas, acima de tudo, e sempre, foi a amizade que nos uniu ano após ano e nos fez partilhar momentos bons e outros menos bons, muitas alegrias e também algumas tristezas que foram aparecendo sem serem chamadas.

Para mim, a Ana Luísa era – prefiro dizer é, será sempre – o puro entusiasmo, uma energia invulgar, toda feita de paixão, de emoção e entrega ao momento, e aos outros. Uma alegria absoluta (que podia, é claro, transformar-se em grande sofrimento se virada do avesso). Creio que a poesia da Ana Luísa traduz esta vibração que lhe era natural, reflectida na música das palavras que tanto amava. Palavras certas com o amor de que era capaz sem medos nem razões, e certas também com a sua insaciável curiosidade e gosto de se maravilhar. Ana Luísa era, acima de tudo, a alegria de estar viva, declinada em múltiplos gestos de atenção pelas pessoas com quem se ia cruzando. E tudo lhe interessava, das coisas máximas às coisas mínimas, pelo que, numa conversa (como nos poemas), podia mudar muito rapidamente de escala e passar de uma recente descoberta da astrofísica a uma receita culinária, ou do olhar da cadela Millie a um verso que achava difícil traduzir.

Detestava a arrogância, a prosápia balofa, a indiferença, a crueldade e podia repudiá-las vivamente sem deixar margem para dúvidas, pois sempre acreditou que valia a pena lutar por um mundo mais justo. Extasiava-se com a humana capacidade de invenção e escrevia sempre como quem parte à descoberta. Tinha um extraordinário sentido de humor, ao qual não era alheia uma surpreendente candura. Era impossível não se gostar da Ana Luísa, não pressentir de imediato o ser humano raro que ela era. É esta mesma pessoa que está nos poemas que escreveu, íntegra, completa e verdadeira. Pelo muito imaginar.

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