O “turismo” chegou à montanha dos alpinistas

E se as agências replicassem no K2, a segunda montanha mais alta do planeta e uma das mais perigosas, o modelo massificado de negócio do Evereste? Está a acontecer. Com recordes de ascensões e muitos avisos de que a tragédia está à espreita.

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Há cada vez mais pessoas a tentar chegar ao topo das montanhas mais altas do mundo Reuters/Navesh Chitrakar

O mundo do alpinismo abriu a boca de espanto quando as agências começaram a divulgar a notícia de que, no passado dia 22, 145 pessoas tinham pisado o cume do K2, a segunda montanha mais alta do planeta.

É um número que se tornou habitual no Evereste, mas que neste gigante isolado e técnico – a “montanha selvagem”, como é conhecida – do Paquistão soa quase a ficção científica.

Para se ter uma ideia, desde a primeira expedição bem sucedida (em 1954) até ao início desta época de escalada, apenas se registavam 377 ascensões bem sucedidas… Pouco mais do dobro do registado num só dia em 2022.

A explicação para este fenómeno é simples: as agências internacionais de montanhismo e as do Nepal decidiram que estava na altura de “vender” o K2 como já vinham fazendo há algum tempo com o Evereste. Para mais, as épocas de escalada são diferentes, o que permite prolongar a actividade por mais uns meses.

Nos Himalaias centrais escala-se na Primavera; no Caracórum, o braço ocidental da mais alta cordilheira do mundo, a melhor janela é a dos meses de Verão. Mas será avisado levar tanta gente para o K2?

É uma montanha demasiado perigosa para replicar o que se faz no Evereste”, avisa João Garcia, que pisou o cume do gigante paquistanês em 2007, no âmbito da sua campanha para escalar todas as 14 montanhas do planeta com mais de 8000 metros sem recorrer a oxigénio artificial. “Ainda por cima, no Evereste há décadas de experiência do pessoal de apoio, que conhece bem o terreno. No K2 não é assim.”

O Evereste (8848m) é mais alto do que o K2 (8611m), mas acaba aí a sua vantagem no que toca a analisar o grau de dificuldade da escalada. A montanha mais alta do planeta está integrada num maciço com os seus visinhos Lhotse (8516m) e Nuptse (7861m); o K2 ergue-se isolado, como uma pirâmide, que se destaca mais de 3000 metros sobre a paisagem circundante.

O Evereste tem um rácio de cumes/mortes (relaciona o número de alpinistas que completam a escalada com as mortes registadas na montanha) de menos de 3,5 por cento; o K2 chega quase aos 23%. E isto sem “amadores” nem multidões: há, ao todo, 10.658 ascensões confirmadas no Evereste, contra apenas 377 no K2. Até agora…

A ameaça do “Gargalo”

João Garcia chegou ao cume do K2 a 20 de Julho de 2007. “Subimos 16, voltaram 14… acaba por bater certo com a estatística”, contabiliza. Nesse ano, o sherpa Niba Nurbu foi vítima de uma queda e o italiano Stefano Zavka desapareceu sem deixar rasto. No ano seguinte, a 2 de Agosto, 11 alpinistas perderam a vida na segunda montanha mais alta da Terra.

Ou seja, não é alarmismo pensar que, se um dia as coisas correrem realmente mal no K2, com o tipo de procura intensiva que os números de 2022 dão a conhecer, a tragédia pode atingir proporções quase impensáveis.

Porque é que o K2 é tão perigoso? Em primeiro lugar, a altitude extrema, apenas superada pelo Evereste. Depois, por ser um local remoto e de difícil acesso (ao contrário do Nepal, naquela região do Paquistão não há aldeias no trilho para o campo-base). Finalmente, porque a escalada é sempre íngreme e muito vulnerável a avalanchas.

Quando se fala de perigos no K2, há um local que sobressai em todos os discursos: o infame Bottleneck, o “Gargalo”, um corredor estreito e íngreme (50 a 60 graus de inclinação) que se estende por volta dos 8200 metros de altitude e tem uma secção que passa por baixo de gigantescos blocos de gelo em equilíbrio instável. Sempre que algum desses blocos colapsa, a rota fica cortada e quem estiver acima desse ponto fica preso na “zona da morte”.

“Há uma rota alternativa, mas muito técnica, só ao alcance de alpinistas, não de clientes que dependem em absoluto das cordas fixas, dos guias e das garrafas de oxigénio”, avisa João Garcia. “Se um grupo de clientes ficar preso nessa zona, acima dos 8200 metros, não há como tirá-los de lá em tempo útil. Mesmo alpinistas muito experientes já foram vítimas desses colapsos no Bottleneck.”

Foi o que aconteceu em 2008 – 18 alpinistas chegaram ao cume e um ficou a escassos metros. Depois, as cordas foram cortadas pelo gelo que se precipitou na rota. Apenas 10 dos 19 regressaram com vida.

Este ano, já morreram duas pessoas no K2, apesar de uma meteorologia particularmente clemente, com longas janelas de bom tempo a permitirem tentativas de cume bem planeadas. Resta esperar que a “Montanha Selvagem” continue de bom humor.

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