O bullying dos opinion-makers

Caros opinadores: conhecer-nos e saber como sofremos implica conhecer estes números e esta realidade. Implica familiaridade com os termos que nos identificam e nos dão espaço e visibilidade.

A propósito de uma campanha educativa e de sensibilização publicada nas ruas com grande amplitude nacional e lançada com a verificação técnica da ILGA Portugal, muita tinta tem corrido sobre género, sexo, sexualidade, igualdade, língua, ideologia, cidadania e sobre a vida pública e privada das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo e das suas famílias.

Desengane-se quem lê descontraidamente as palavras dos habituais, sempre cultos, sempre certos, sempre doutos, sempre os mesmos opinion makers. Os artigos de opinião publicados nas últimas semanas podem soar a discussões intelectuais e etéreas, mas chegam à maior parte das pessoas LGBTI+ que os leem como atos de bullying. No meio das partilhas e comentários nas redes sociais, funcionam como balas perdidas: os estilhaços ferem e propagam o ódio.

Enquanto decidem se temos o direito a ser quem somos – e sempre tão obcecados com o uso dos termos e com a nossa legítima apropriação de uma língua que ainda nos invisibiliza (não é ela dinâmica e evolutiva ao longo da história?) –, os opinion-makers parecem querer atirar areia para os olhos e ignorar a realidade dolorosa de milhares de pessoas LGBTI+ que ainda sofrem com o silêncio, com o medo e com a discriminação infligida pela sociedade portuguesa.

Entre 2020 e 2021, os pedidos de apoio psicológico recebidos pela ILGA Portugal aumentaram 60%. Dos casos de vítimas de violência, 45% sofreram de violência doméstica e familiar e os restantes 55% de violência de género. Dos pedidos de apoio social, uns preocupantes 10% referiram-se a pessoas em situação de sem-abrigo ou de acolhimento de emergência.

Milhares de pessoas trans continuam em lista de espera durante anos para conseguir aceder a cuidados de saúde que lhes são negados, com processos de afirmação atrasados e rodeados de sofrimento porque o sistema não abraça as suas necessidades e as suas reivindicações. As crianças e jovens trans e intersexo continuam sem serviços de saúde especializados, aumentando gravemente o risco de ideação suicida.

Na UE, uma em cada cinco pessoas sente-se discriminada no seu local de trabalho e uma em cada duas pessoas trabalhadoras LGBTI+ foi vítima de assédio e ameaças.

A maioria das pessoas LGBTI+ jovens em Portugal ainda são vítimas preferenciais de cyberbullying e de bullying em contextos como a escola, o espaço público e também na família. Enquanto isso, professores universitários continuam a achar possível sair-se incólume apregoando ao mundo que as pessoas LGBTI+ são “lixo humano".

E a cereja no topo do bolo: o Orçamento do Estado continua a fazer de conta que as pessoas LGBTI+ não existem, com mecanismos de financiamento nesta área a dependerem de receitas erráticas vindas dos jogos sociais. Raspadinhas versus Direitos Humanos.

Caros opinadores: conhecer-nos e saber como sofremos implica conhecer estes números e esta realidade. Implica familiaridade com os termos que nos identificam e nos dão espaço e visibilidade. Implica saber falar a nossa língua; saber aproximar, dialogar e conectar com a forma como recuperamos e reconquistamos a felicidade e as vivências que nos foram e ainda nos são continuadamente negadas. Implica reconhecer que grande parte de nós não nasceu nem cresceu em espaços seguros ou privilegiados; saber que sofremos de violência: de género, sexual, física, psicológica, discursiva. Implica saber que lutamos – e saber juntar-se a esta luta. Implica não perder o foco; ultrapassar o cansaço; manter-se do lado certo da história.

Precisamos de mais braços para escassos recursos. A quem escreve sem olhar às palavras ou olhando para o lado menos relevante das mesmas, devolvemos um apelo: venham trabalhar connosco na dura realidade do dia-a-dia. Venham conhecer as nossas pessoas e a língua que ousamos (re)construir. Venham trilhar connosco o caminho tortuoso da reivindicação dos nossos direitos novamente ameaçados. Será duro e com muitos desencontros, mas com toda a certeza de que estaremos do lado certo da história. Come to the rainbow side. We have condoms.

Nota: hoje, mas só hoje, a autora escreve no masculino. Para não ferir a língua, coitadinha.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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