Carine Patrício e a vida de escanção. “Levanto-me às 4h30 para estudar”

Portugal organizará o concurso mundial de escanções em 2026. Uma oportunidade para divulgar o salto qualitativo dos nossos vinhos, sempre associado a sacrifícios enormes dos concorrentes, como Carine Patrício, que começa e acaba o dia a estudar a vitivinicultura de todo o mundo.

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Carine Patrício representará Portugal na edição de 2023, em Paris. Em 2026, o concurso será cá. DR

Os melhores escanções de 70 países serão submetidos, por cá, em 2026, a testes que arrepiam pelo seu grau de exigência, mas que são indispensáveis para a obtenção da tão cobiçada categoria de melhor escansão do mundo. O Best Somellier of the World, organizado em parceria pela Association de la Sommellerie Internationale (ASI) e a Associação dos Escanções de Portugal (AEP), é o concurso mais importante do mundo, organiza-se de três em três anos e avalia as competências dos candidatos em matérias relacionadas com o vinho, mas também com as bebidas destiladas, cocktails, chás, cafés ou águas. Um concorrente tanto pode ser confrontado no exame com a última autorização legal para plantar Pinot Noir numa qualquer região da Alsácia como elencar quantos produtores fazem vinho do Porto Garrafeira. Tanto poderá ter de dissertar sobre a diferença entre um chá preto japonês (raro) e outro chá da mesma família do Ceilão como avaliar o pH de um conjunto de águas engarrafadas.

Por regra, imagina-se que que um candidato ‘só’ tem de esmiuçar um vinho até à mais ínfima molécula (país, casta, região, solos, ano, técnicas de enologia, madeira de estágio e por aí fora) e isso exige a memória de uma manada de elefantes, mas é esse nível de exigência aplicado a um vasto conjunto de bebidas e respectivas técnicas de serviço. Tudo escrutinado à lupa por jurados exigentes.

Tiago Paula, actual presidente da AEP, reconhece, ao Terroir: “Já é muitíssimo difícil estudar todas as regiões vitícolas mundo, ainda por cima quando estamos perante um concurso que surpreende em todas as edições. Mas como não é só o vinho que está em causa, é fácil imaginar a ansiedade que se instala num concorrente. Agora, se calhar é mesmo essa lotaria que atrai os escanções de todo o mundo, que fazem sacrifícios incalculáveis para participarem num campeonato que é uma espécie de Óscar do nosso sector”.

Veja-se o caso de Carine Patrício, que voltará a representar Portugal na próxima edição do concurso mundial, que se realiza em Paris no próximo ano. “Para estar neste campeonato temos de trabalhar muito. No meu caso levanto-me às 4h30 para estudar e só me deito depois de estudar os flashcard que eu própria criei” [pequenos cartões que ajudam a sistematizar, a resumir e memorizar determinadas matérias, neste caso do universo do vinho]. Durante o dia, faço pelo menos uma prova cega com dois vinhos. Folgas, fins-de-semana ou férias servem apenas para uma coisa: estudar e provar mais”.

Do ponto de vista da dedicação, a vida de Carine é mais ou menos igual à de outros escanções de todo o mundo. Mas há detalhes que fazem a diferença. E, à cabeça, o facto de viver na Alemanha e treinar com equipa nacional alemã, que é liderada por Marc Almert, campeão do mundo de somelliers em 2019, com apenas 27 anos. “O Marc faz parte da nova geração de somelliers e é alguém com uma capacidade de atenção e análise a conjunto de itens que um somellier deve dominar. Ele vê detalhes que mais ninguém vê. E isso é muito importante porque, quando estamos concentrados nas provas, nem nos apercebemos dos erros que cometemos”.

Carine nasceu em Leiria, mas muito cedo foi com os pais para França. Estudou Filosofia e Literatura, e, durante o curso, foi à Alemanha no âmbito do programa Erasmus. Aqui fez amizade com um cozinheiro e descobriu que havia um “mundo gracioso, onde se está permanentemente a aprender para dar prazer aos outros”. “Fiquei tão apanhada por isto que decidi que era o que queria para mim. Regressei e acabei o curso só para não dar um desgosto aos meus pais, mas depois entrei neste universo e daqui nunca mais saí”.

Chegou a head sommellier do restaurante Schanz (três estrelas Michelin) e, quando estava a gozar a felicidade do feito, teve um AVC. Deixou o trabalho do dia-a-dia do restaurante, criou a CP Wine Consulting e trabalha com o produtor alemão Joh.Jos Prum, que é uma referência mundial em matéria de Riesling – a casta nobre alemã e uma das castas de vinhos brancos mais importantes do mundo.

Claro que viver num país rico e no centro da Europa permite a Carine frequentar um vasto conjunto de formações noutros países com um poder de compra elevado, que o mesmo é dizer países onde se vendem todas as grandes marcas do mundo (de vinhos a saquês, passando por cafés ou chocolates). Num fim-de-semana está na Bélgica e noutro poderá estar na Suíça para trabalhar com psicólogos especializados na área do desporto. “Aqui, a questão do mental coach vale tanto como treinar na prova cega ou estudar fermentações. Na altura das competições não contam apenas as nossas competências técnicas. Conta a nossa a tranquilidade para responder a desafios que são sempre surpresas. Isto é como no ténis. Não é o físico que faz um campeão – é sua mente.”

À parte disso, Carine desenvolve um conjunto de contactos com escanções de todo o mundo, através da partilha de informação de interesse para todos. “O tempo em que o sommellier fazia do segredo a sua arma já lá vai. Hoje é tudo muito diferente. Por via da partilha de documentos online, em que cada um de nós levanta questões e apresenta respostas, aprendemos e avançamos em conjunto. Só um – ou uma – pode ficar em primeiro, mas fazemos todos parte de uma equipa que tem o desejo permanente de aprender.”

Esta solidariedade também existe por cá, com muitos escanções a juntarem-se para reduzir custos na compra e prova de vinhos. O problema é que os apoios financeiros são escassos. “Um escanção que queira treinar para competições internacionais pode ter que desembolsar cerca de 10 mil euros por ano, entre a compra de vinhos e viagens”, diz-nos Tiago Paula, que, todavia, espera que o concurso que trará a Portugal cerca de 300 pessoas (entre concorrentes, jornalistas de todo o mundo e staff) sirva para que o sector “olhe com outros olhos para o papel do escanção”. Mas uma coisa é certa: “seja pelo concurso, pela presença de jornalistas e pelas oito ou dez masterclasses com vinhos portugueses, este evento – com um custo entre 500 a 700 mil euros, consoante seja realizado em Lisboa, Porto ou Coimbra – será estratégico para o vinho português”.

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