Crianças enfrentam “mais perigos” online. Pode uma nova lei europeia inverter a tendência?

A Lei dos Serviços Digitais proíbe publicidade direccionada a crianças, bem como estabelece uma sanção às empresas que não removam conteúdo ilegal das suas plataformas. Para os especialistas, este é um passo positivo, mas ainda assim insuficiente.

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Apenas 53% das crianças portuguesas, entre os 9 e os 17 anos, sentem-se seguras na internet Reuters / Daniel Becerril

O Parlamento Europeu aprovou no início do mês, a 5 de Julho, a Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla inglesa), que visa reforçar a regulação da Internet de forma a garantir a segurança digital dos cidadãos europeus. Mas e as crianças? O que significa a nova legislação para os mais novos e a sua segurança online? Para a presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), Dulce Rocha, trata-se de um passo positivo, mas “insuficiente”. Para Bruno Castro, especialista em cibersegurança, este é um “pacote legislativo altamente ambicioso”.

Entre as medidas, destaca-se a proibição de publicidade direccionada a crianças. A nova legislação, que é uma actualização da directiva de 2000 sobre o comércio electrónico, define também multas de até 6% das receitas totais das empresas no caso de não removerem das suas plataformas conteúdo ilegal, como imagens de abuso sexual. Dulce Rocha lembra que organizações não-governamentais como o IAC reclamam, sobretudo, por uma nova directiva centrada na segurança online dos mais novos. “Congratulamo-nos muito com o trabalho que está a ser feito, mas ainda não há, como pretendemos, uma directiva europeia”, declara.

Já Bruno Castro vê a Lei dos Serviços Digitais como uma parte de um “pacote legislativo altamente ambicioso”, que permite “criar um quadro de responsabilização dos intermediários de serviços digitais”. À Reuters, Daniela Ligiero, co-fundadora do Brave Movement, partilha da mesma perspectiva: “A importância desta legislação é [dizer]: ‘Não, [a regulação] não é voluntária, há certas coisas que tens de fazer’.” Ao PÚBLICO, Dulce Rocha destaca a importância de se “convencer as plataformas [online] de que há limites”.

Na opinião do especialista em cibersegurança, “o papel da União Europeia deve ser precisamente aquele que se tem vindo a observar nas últimas décadas”. Em resposta ao PÚBLICO, Bruno Castro destaca, por exemplo, a proibição de publicidade direccionada a crianças como uma forma de proteger “os direitos fundamentais dos próprios utilizadores, em especial dos menores”.

Apesar dos elogios, tal como Dulce Rocha, o fundador e CEO da VisionWare reconhece haver algumas insuficiências. Critica, sobretudo, o nível de sanções previsto para as grandes plataformas online em caso de não cumprirem com as normas definidas. Para o especialista, justificava-se mais do que os 6% de multa, pela “dimensão de algumas” empresas visadas e pelos “riscos cibernéticos associados” às actividades ilegais na Internet. A presidente do IAC concorda com as sanções.

"Mais perigos”, mas expectativas moderadas

Dulce Rocha relembra que a pandemia veio trazer “mais perigos”, alertando contra uma “falsa sensação de segurança quando as crianças e os adolescentes estão em casa”. Segundo o mais recente relatório da rede de investigação EU Kids Online, de 2020, apenas 53% das crianças portuguesas, entre os 9 e os 17 anos, sentem-se seguras na Internet. Bruno Castro assinala que, muitas vezes, as ferramentas positivas da Internet “não são desenvolvidas tendo em consideração os interesses das crianças e jovens”, criando perigos para os mais novos.

Embora a nova lei traga a “clareza necessária” e tenha potencial para ajudar na confiança no mundo digital, de acordo com Siada El Ramly, directora-geral da Dot Europe, organização que reúne as grandes tecnológicas, há algumas dúvidas por esclarecer. O equilíbrio entre privacidade e transparência é uma das principais preocupações das empresas, aponta à Reuters. E reforça que “não podem ‘ser puxadas nos dois sentidos’”.

No que toca à implementação da legislação também não há muitas certezas, apesar de ter sido anunciada uma task force com cerca de 80 funcionários. Ao PÚBLICO, Dulce Rocha mostra-se “moderadamente confiante” e acredita que as medidas propostas “vão ter algum significado e alguma eficácia”. Bruno Castro não quer arriscar adivinhar o futuro e assinala apenas os “muitos esforços” da União Europeia.

À Reuters, os críticos apontam para as falhas que houve na aplicação das regras de privacidade que regem as grandes tecnológicas, o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD). A entidade supervisora de protecção de dados da União Europeia recomenda, por isso, o recurso a um supervisor europeu, em vez das agências nacionais, para tratar dos casos de privacidade transfronteiriços.

Falta fazer mais

Apesar das dúvidas, os especialistas não deixam de ver a nova lei como algo positivo. É “uma peça do puzzle”, diz à Leanda Barrington-Leach, responsável pelos assuntos europeus da 5Rights, uma fundação que promove a participação das crianças e jovens online. À Reuters, Barrington-Leach acrescenta que há mais a fazer. É importante que se consagre “o código de design apropriado para a idade”, ou seja, um livro de regras para os produtos usados pelas crianças e para a forma como os seus dados são utilizados, uma abordagem que o Reino Unido já adoptou e que limita a recolha da localização e de outros dados pessoais das crianças, num total de 15 normas a seguir pelas empresas.

Ao PÚBLICO, Dulce Rocha defende que o mais importante é que se crie “um sistema de recuperação global” para as vítimas, que abranja quer apoio financeiro quer psicológico. Bruno Castro assinala a “sensibilização e formação” como as duas principais chaves para o futuro. “Deverá existir uma abordagem proactiva e de forma continuada do próprio Estado, no sentido de criar literacia sobre cibersegurança adequada às crianças e a todo o universo que as rodeia”, propõe.

Com as novas iniciativas da Comissão Europeia, Leanda Barrington-Leach diz à Reuters que sente “a maré a mudar”. Para a responsável, “as empresas tecnológicas estão-se a aperceber de que estão agora a ser olhadas mais de perto”. Como aponta Jim Steyer, fundador da Common Sense Media, uma organização sem fins lucrativos norte-americana, que oferece formação a famílias menos privilegiadas, à Reuters, o pacote europeu de legislação pode acabar por ser replicado noutros países e regiões, nomeadamente nos Estados Unidos.


Texto editado por Bárbara Wong

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