Primeira Exposição Colonial Portuguesa: 88 anos depois, o que temos a ver com isso?

É uma ferida aberta para aqueles que carregam perdas irreparáveis da história colonial e que são lembrados dia após dia de como, historicamente, foram e são deixados às margens.

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Nelson Garrido

No mês de Junho, em 1934, era inaugurada a Primeira Exposição Colonial Portuguesa, nos Jardins do Palácio de Cristal. Com o intuito de promover o Estado Novo, foram expostas as colónias portuguesas procurando enaltecer um sentimento nacionalista e vangloriar as supostas conquistas de Portugal. Após ser deixado no silêncio por anos, armazenado num passado colectivo quase apagado, o evento, de há uns tempos para cá, tem sido trazido de volta como foco da agenda artística e cultural do Porto, como as caminhadas guiadas pelo InterStruct Collective, a programação do Programa de Incursão à Galeria (Ping!), da Galeria Municipal do Porto, e o CORTEJO, uma recente visita guiada-performática, no Palácio de Cristal, realizada por Solange Freitas e Tiago Cadete.

O que de facto representa esse evento? O que significa trazer esse assunto aos dias actuais? O que temos a ver com isso? É apenas um passado a ser relembrado e deixado como história?

Falamos de um evento cruel e violento que objectificou e exotizou corpos negros e racializados, através de uma representação pelo olhar do colono, branco e majoritariamente masculino. Marca uma relação hierárquica desigual entre o Estado colonizador e o território colonizado. Estamos a falar de pessoas que foram trazidas dos seus territórios de origem, em viagens longas, com uma promessa vazia que as fez permanecer por pelo menos quatro meses em Portugal para serem expostas a portugueses e estrangeiros que eram incentivados a visitar a exposição.

Assinalam-se 88 anos desde que a exposição aconteceu e ainda assim carregamos parte dela em nós. Carregamos de formas diferentes dependendo do lugar que falamos, condicionados pela nacionalidade, pelo sexo, pelo género, pela classe e pela raça. Trata-se de uma questão de relacionamento desigual que permanece actualmente. É uma ferida aberta para aqueles que carregam perdas irreparáveis da história colonial e que são lembrados dia após dia de como, historicamente, foram e são deixados às margens. Ao mesmo tempo que essa herança entra nas sociedades actuais, envolvendo perspectivas de organização social, de noção de sujeito, reiterando uma matriz da dominação que afirma uma verdade universal e hierarquiza o social e os saberes.

É preciso um reordenamento das relações, como nos diz Achille Mbembe (2021). Uma relação que não seja baseada por uma verdade única, pela verdade guiada pela narrativa europeia branca, aquela que impõe uma visão sobre os Outros, uma visão sobre negros e racializados, sobre as suas ex-colónias que, mesmo actualmente independentes, não escapam das amarras de perspectivas discriminatórias, violentas e excludentes.

O evento de 1934 precisa de ser assumido pela sociedade portuguesa, mesmo sendo parte do passado, mesmo sendo história. Precisa de ser assumido e reconhecido nos dias actuais e nos ecos que chegam, mesmo quando subtis e involuntários, nas formas de se relacionar.

Enquanto brasileiras ainda forem chamadas “mercadorias” e “putas”, enquanto comentários violentos direccionados àqueles que têm a língua portuguesa como língua materna forem “fale o português correcto”, enquanto a raça e a nacionalidade forem ainda alvo de chacota, de violência, de racismo, de xenofobia, ainda estamos falando da mesma perspectiva da Exposição Colonial, mas com outra cara e outra vestimenta; ainda estamos falando do mesmo olhar sobre o Outro, um olhar que se acha o único certo, o detentor da verdade, e é aqui que é preciso pensar em novas formas de relacionamento.

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