SNS, o caos nas urgências

As urgências são atualmente o cancro dos hospitais cuja vida normal desintegram e cuja produtividade lesam.

O encerramento total ou parcial dos Serviços de Urgência de muitos hospitais, que tem vindo a ocorrer, vai continuar e seguramente agravar-se durante os próximos meses. Por incapacidade de resposta à afluência de utentes que a eles acorrem, 60 a 70% dos quais não apresentam situações clínicas que justifiquem o abuso; por falta de espaços onde possam ser atendidos com condições mínimas; por esgotamento físico e mental dos profissionais; por necessidade de contratação de tarefeiros, desligados da instituição e do seguimento dos doentes; pelo dispêndio de verbas incomportáveis; pela continuada irresolução dos problemas que afetam esta área dos cuidados de saúde.

Mas sobretudo porque o Governo se recusa a resolver o problema em definitivo, não aceitando a evidência: que as urgências são atualmente o cancro dos hospitais cuja vida normal desintegram e cuja produtividade lesam. E porque, em vez de tomar as medidas adequadas ( equipas dedicadas com horários de trabalho normais, limitação do acesso aos utentes em situações de emergência e de urgência, criação de consultas de atendimento permanente para os não urgentes, alargamento dos horários de funcionamento das instituições ), toma as medidas desadequadas: multiplicação e alargamento dos serviços ditos de urgência, mais profissionais e mais exaustão dos mesmos, mais custos com milhões em horas extraordinárias e em pagamentos a tarefeiros.

Ao falar de um Serviço de Urgências em saúde, a primeira coisa sobre que devemos entender-nos é do que estamos a falar. Uma coisa é um Serviço de Urgências ( SU ) e outra é um Serviço de Atendimento Permanente (SAP). Neste atende-se tudo; naquele atende-se o que é urgência e emergência, conceitos bem definidos pela natureza e gravidade da situação e pelo tempo necessário ao seu atendimento. Claro que há “nuances” entre algumas situações clínicas, mas que não desvirtuam os conceitos. Não há doenças urgentes, há situações de urgência, em todas as especialidades. São estas as que devem ser atendidas num verdadeiro Serviço de Urgências. E a sua triagem deve ser feita antes do hospital e não já dentro dele.

Ora o que mostra a evidência dos nossos SU, e já o mostra há mais de cinquenta anos, é que as situações de emergência e urgência (pulseiras vermelhas e laranja) constituem menos de um terço dos casos que ali acorrem. E cujo atendimento e tratamento será seguramente prejudicado e o risco aumentado pelo afluxo indevido dos restantes 70% que não são urgentes. Coloquem-se no lugar dos primeiros e pensem no risco que correm, devido á afluência irracional dos segundos. Que ninguém quer travar!

Num artigo publicado há pouco tempo nos EUA, Emergency Department Crowding: the Canary in the Health Care System - NEJM Catalyst, September 28, 2021, um grupo de oito médicos, todos professores de Medicina de Urgência, fez uma exaustiva análise do que se verifica nos hospitais daquele país e retirou um conjunto de conclusões que resumo:

  • A sobrelotação dos SU é um sintoma de disfunção do sistema de saúde.
  • Há evidências incontroversas de que a sobrelotação aumenta o risco dos doentes em situação de urgência e emergência.
  • Dados os riscos decorrentes da sobrelotação dos SU, para os doentes em situação de urgência e emergência, a resolução da afluência excessiva é um imperativo moral.
  • O impacto do excesso de doentes nos Serviços de Urgência, na sua morbilidade e mortalidade, no erro médico, no “burnout” dos profissionais e nas despesas excessivas está bem documentado.
  • A afluência excessiva de utentes não tem solução possível no SU, sendo necessárias medidas ante e pós-entrada no hospital para a resolver.
  • Criar mais SU, alargar os existentes, aumentar o pessoal do serviço ​ou os seus horários de trabalho não resolve o problema.

Ressalvado o viés das diferenças de dois sistemas de saúde muito diversos - o nosso e o dos EUA -, as conclusões podem perfeitamente aplicar-se ao que se passa entre nós, mostrando a identidade das causas e das soluções.

Soluções que, como vimos apontando há muito, passam fundamentalmente por:

a) Limitar o acesso aos SU, ao qual os utentes só deveriam aceder “por convite”, como diz o Dr. Nelson Pereira, diretor do Serviço de Urgência do Hospital de S. João, um dos mais sobrelotados do país.

b) O “convite” deverá ser feito pelo médico de família do utente ou pelo seu médico assistente, pela Saúde24, ou pelo INEM, aos quais o utente deveria dirigir-se em primeiro lugar e que justificariam a urgência da situação.

c) Para conseguir esse objetivo é necessário que os Cuidados Primários façam atendimento permanente até às 20 horas (horário durante o qual acorrem aos SU 75% dos utentes); que as consultas hospitalares funcionem de manhã e de tarde e tenham urgência aberta; que os cuidados de saúde domiciliários se tornem efetivos; que os cuidados continuados assegurem o seguimento dos doentes que não imponham internamento hospitalar.

d) O atendimento nos SU deve ser feito por equipas dedicadas, constituídas por profissionais que cumpram aí a sua atividade em dedicação plena e em horário normal de trabalho. Equipas cuja constituição mínima deixaria de motivar a discussão que a esse respeito a Ordem dos Médicos tem levantado, com concordâncias e discordâncias que podem impossibilitar a resolução racional do problema das Urgências. Conscientes disto mesmo, 1200 médicos pediram recentemente à Ordem dos Médicos a criação da especialidade de medicina de urgência que, ao que parece, na UE só não existe entre nós. Num país que tem mais de quarenta especialidades, subespecialidades e competências!

Se tudo isto se pusesse em prática - o que é uma decisão política - ganhariam os doentes, que seriam mais bem tratados; ganhariam os profissionais, que não estariam sujeitos a esgotamento físico e mental; ganhariam as instituições, com o pessoal a exercer a sua atividade em pleno nos respetivos serviços, sem desvios para os Serviços de Urgência; ganharia o Estado, pela poupança de milhões em horas extraordinárias - deixando de converter em ordinário o que devia ser extraordinário - que poderia aplicar nas medidas estruturais de que o SNS carece com urgência.

Quando pelo contrário, para resolver o problema se equaciona o alargamento ou a construção de “novos” SU, ou o pagamento de milhões de horas extraordinárias, ou a contratação de tarefeiros a preços obscenos, continua-se a desperdiçar recursos humanos e financeiros sabotando as verdadeiras urgências e impedindo que o problema se resolva radical e definitivamente. Continua-se a esconder a “nudez forte da verdade, sob o manto diáfano da fantasia!”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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