Parlamento aprova na generalidade quatro projectos de lei que legalizam a eutanásia. Referendo foi chumbado

Maioria da bancada social-democrata mostrou-se a favor da consulta pública proposta pelo Chega.

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Nuno Ferreira Santos

Ao final de duas horas de debate, os projectos de lei do PS, do BE, do PAN e Iniciativa Liberal, que legalizam a eutanásia foram aprovados, na generalidade, embora com resultados ligeiramente diferentes entre si.

No projecto de lei socialista, houve 128 votos a favor, 88 contra e cinco abstenções. A bancada social-democrata foi maioritariamente contra (63 parlamentares), só seis foram a favor e registou-se uma abstenção, enquanto no PS apenas sete eleitos votaram contra. Os oito deputados da Iniciativa Liberal votaram a favor. O PCP e o Chega votaram contra as quatro iniciativas. Os deputados únicos do PAN e do Livre votaram favoravelmente aos diplomas.

Já o projecto do Chega, que pretendia realizar um referendo sobre a matéria, foi chumbado com os votos contra do PS, de nove deputados do PSD, dos oito da Iniciativa Liberal, do PCP, do BE, e dos deputados únicos do PAN e Livre. No total, a intenção do Chega colheu o voto contra de 147 deputados e a opinião favorável de 71 deputados, a esmagadora maioria pertencentes à bancada social-democrata.

Na votação das quatro iniciativas, as diferenças residem no número abstenções: os projectos de lei do BE e da IL tiveram seis abstenções (mais uma do que a proposta do PS), 127 votos a favor e 88 votos contra. A iniciativa do PAN teve sete abstenções, 88 votos contra e 126 a favor.

Na bancada social-democrata, o líder parlamentar, Paulo Mota Pinto, foi um dos 63 deputados que se opuseram à legalização da eutanásia. Também partilharam desta posição o actual secretário-geral José Silvano, os vice-presidentes da bancada Ricardo Baptista Leite, Paula Cardoso e o ex-líder parlamentar Fernando Negrão. Na posição contrária estiveram André Coelho Lima e Mónica Quintela. Entre os socialistas que estiveram em minoria na sua bancada contam-se Pedro Cegonho, Joaquim Barreto e Romualda Fernandes.

Lei “defensiva”, diz PS

A deputada do PS Isabel Moreira abriu o debate parlamentar sobre a despenalização da eutanásia, defendendo que “não há, em termos de direito comparado ou nacional, conceitos mais densificados do que estes, nem lei mais defensiva”. Isabel Moreira referia-se ao conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema, a lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante” inscrito no projecto de lei socialista e que já constava na proposta anterior.

“Com o devido respeito, após o Acórdão do Tribunal Constitucional já referido e perante esta redacção, insistir na inconstitucionalidade do projecto que hoje aqui se debate levaria a que se tivesse de ter por inconstitucionais, por enorme maioria de razão, muitas normas actualmente em vigor”, afirmou.

Referindo directamente o Presidente da República, Isabel Moreira referiu que os regimes jurídicos que legalizam a eutanásia estão a aumentar. “Os ordenamentos jurídicos que nos são cultural e socialmente mais próximos adoptaram a solução que agora propomos e nós, com mais rigidez procedimental”, disse. A deputada referiu-se directamente às “dúvidas” do Presidente da República. “Mas sabemos, e sabe quem está de boa-fé, lendo as definições de conceitos que sempre estiveram na lei aqui aprovada que ‘doença fatal’ nunca significou ‘morte iminente’. Esteve sempre em causa uma doença de extrema gravidade que põe em risco a subsistência mesma da vida, causando um sofrimento atroz ao paciente”, afirmou.

Isabel Moreira considerou que “esta sempre foi a lei da não perseguição penal”. “Esta sempre foi a lei que parte do princípio de que é o próprio sujeito autónomo que deseja a eutanásia, sujeito esse que, tendo liberdade para tomar decisões vitais ao longo da vida sem possibilidade de interferência por parte do Estado, também tem liberdade para ter um espaço legalmente reconhecido de decisão quanto à sua própria morte. Esta sempre foi a lei que nos convida a aceitar o outro. Na dúvida, tolerância”, concluiu.

Foi já no encerramento do debate que o líder da bancada socialista, Eurico Brilhante Dias, defendeu a iniciativa da sua bancada. “É um projecto de lei que responde também à interacção com outros órgãos de soberania, que respeitamos, e que ajudaram à melhoria e à densificação conceptual do diploma, bem como reforçaram a consistência interna do trabalho final que o grupo parlamentar do PS e outros grupos parlamentares se apresentam hoje nesta câmara”, afirmou sem se referir directamente ao Presidente da República, que vetou o decreto anterior sobre a matéria.

A coordenadora do Bloco de Esquerda também já se tinha referido às “dúvidas” de Marcelo Rebelo de Sousa mas para dizer que a despenalização da morte assistida reflecte uma posição maioritária no país.

“A decisão maioritária de despenalizar a morte assistida há muito que está tomada pelo Parlamento, correspondendo à vontade inequívoca da maioria da sociedade. O que hoje aqui fazemos é tão só dar resposta às dúvidas suscitadas pelo senhor Presidente da República sobre detalhes da redacção da lei”, considerou. Catarina Martins assegurou que a bancada trabalhou “afincadamente para que não subsistam quaisquer dúvidas ou reservas sobre o conteúdo da lei”.

Pela Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo confirmou que a bancada viabilizará todos os projectos de lei (PS, PAN, BE, além da iniciativa da própria IL) e assumiu ser contra a proposta do Chega de realizar um referendo. “Esta é uma tentativa tosca de fazer duas coisas inaceitáveis. A primeira é de estabelecer um precedente de que direitos fundamentais e liberdades individuais são referendáveis. Não são e nunca deverão ser”, afirmou, criticando também o sinal de fazer crer que “a democracia directa alcança virtudes inalcançáveis pela democracia representativa”. O líder da Iniciativa Liberal foi duro com a “via referendária” por corresponder “a uma visão intrinsecamente populista da democracia, que é contrária à democracia liberal”.

Chega diz que Parlamento mostra “medo"

André Ventura, líder do Chega, saiu em defesa do seu projecto que propõe uma consulta pública. Citou várias figuras do PSD como Paulo Rangel e, claro, o líder eleito Luís Montenegro, que defendem o referendo. E condenou o Parlamento que se espera que chumbe a sua proposta de consulta. “Não queremos ouvir-vos, temos medo de vos ouvir, preferimos andar de emaranhado legislativo em emaranhado legislativo”, disse.

Por seu turno, a líder do PAN, Inês Sousa Real, que também é favorável à despenalização da eutanásia, lembrou que o doente terá sempre acesso a informação sobre outras alternativas. “Com estas propostas, a pessoa terá toda a informação sobre as alternativas existentes, nomeadamente no que aos cuidados paliativos e continuados diz respeito. É dever do Estado garantir que estas respostas existem, assim como é dever da lei garantir que as pessoas têm direito a decidir quando se encontram nas condições descritas nas iniciativas”, afirmou.

O PSD, que deu liberdade de voto na bancada, dividiu as intervenções por deputados que estão a favor da eutanásia e os que estão contra. Coube a Paulo Rios defender a oposição aos diplomas, considerando que as novas formulações em debate são “laxistas” e “abrem mais a porta” à eutanásia. “No dia em que a solução para a doença for a morte, falhámos”, disse o vice-presidente da bancada.

Por outro lado, André Coelho Lima, também vice-presidente da bancada, assumiu ser a voz favorável à alteração da lei mas não “à morte”.

“Não sou a favor da eutanásia, mas também não sou contra”, declarou o deputado. “Não me diz respeito o que cada um entende fazer com a sua vida”, disse. O vice-presidente da bancada disse ser contra a hipótese de o Estado poder decidir “se em que condições pode alguém morrer”, mas também contra o Estado poder “manter-nos vivos mesmo contra a nossa vontade”. “Esta matéria é um acto de amor, de compreensão, de altruísmo”, que passa por “respeitar a convicção dos outros”, mesmo que dela discordemos.

Em contraste com esta posição, a deputada do PCP Alma Rivera considerou que o que está em causa é a atitude do Estado relativamente à fase terminal dos seus cidadãos. “Não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é o sentido em que a sociedade se deve organizar e em que os seus recursos devem ser mobilizados perante a doença e o sofrimento”, afirmou, mostrando preocupação com “as consequências sociais” que podem decorrer do processo legislativo. Nesse sentido, o PCP mantém o voto contra todas as iniciativas em debate.

A proposta de referendo viria a ser também condenada pela socialista Alexandra Leitão: “É errada, inaceitável e inconstitucional, não se referenda matérias de direitos fundamentais.”

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