Chappelles há muitos

O material é militantemente trivial. Superstições (não é engraçado que as pessoas acreditem em Deus, ou em fantasmas?), diferenças entre cães (fiéis!) e gatos (independentes!), brejeirices sobre os últimos pânicos morais (mulheres… com pénis!), a indignidade dos exames à próstata (dedos… no rabo!), a sida (a sida!), e Hitler (Hitler!).

O mais recente especial de comédia de Ricky Gervais para a Netflix, SuperNature, disponibilizado na plataforma desde a semana passada, não inclui praticamente nada que não tenhamos visto antes, pelo que é da mais elementar proporcionalidade que nenhuma das reacções que gerou tenha sido original. Parte integrante de meia dúzia de ciclos culturais e mediáticos contemporâneos, a “estreia-de-um-novo-e-controverso-especial-de-comédia” é um fenómeno tão calendarizado, familiar e previsível como um festival de solstício ou uma cerimónia de graduação, e as suas características e rituais podem ser adivinhados com semanas de antecedência. Sabemos o portfólio de tabus envolvido (questões de género e/ou raciais), conhecemos os respectivos vocabulários flutuantes e terminologias especializadas (woke, TERF, “cultura de cancelamento”), conseguimos adivinhar com elevada precisão os títulos de futuras notícias (“Gervais acusado de transfobia”, “Gervais criticado por intolerância”, “Gervais defende-se de etcetera”), e até a orientação geral de algumas reacções do público, uma parte substancial das quais consiste menos em reagir do que na ansiosa ou exultante monitorização de reacções alheias (o riso de quem imagina aqueles que não estão a rir, a indignação de quem imagina aqueles que estão insuficientemente indignados). Uma das críticas positivas mais votadas no Letterboxd atribui 5 estrelas ao especial, e comenta apenas “Mal posso esperar para ver a reacção da internet!” O que é, de facto, o prato principal.

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