Quantas Sarajevos cabem na Ucrânia?

O escritor Rui Cardoso Martins escreveu este texto para acompanhar a exposição Diakuyu, Obrigado - Fotógrafos e Artistas com a Ucrânia, que visa a recolha de fundos para ajudar os refugiados ucranianos que chegam a Portugal, apoio que será distribuído através da associação Ukrainian Refugees. A exposição reúne um vasto leque de artistas e repórteres fotográficos (60 nomes) num único espaço e pode ser visitada na Galeria da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, até ao dia 4 de Junho.

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Técnicos polacos e ucranianos da Igreja Cristã Ortodoxa Arménia de Lviv guardam uma estátua de Cristo do século XV, retirada de uma igreja do bairro arménio daquela cidade, no início de Março André Luís Alves

Porque diakuyu significa obrigado, quero lembrar o meu pai, que morreu há meses sem ver outra horrível guerra no mundo, e o seu último conselho: “Nunca digas aquela palavra que está a mais, nem sequer a guardes para usar mais tarde.” Isto não significa não dizer aquilo que tem de ser dito.

Vi esta mãe ucraniana, na RTP, entrevistada ao desembarcar extenuada com o filho pequeno.

Porque é que escolheu Portugal?

Foi por intuição. Tentei ouvir o meu coração e escolhi Portugal.

Diakuyu a esta mãe refugiada. A intuição é importante e, dizendo o que tem de ser dito, todas as pessoas que respeito sentem, sabem que a invasão da Ucrânia é errada, mentirosa, estúpida, cruel, assassina e inaceitável. A terra arrasada, na Europa.

Obrigado a quem se lembrou desta exposição. E às dezenas de fotógrafos portugueses que oferecem uma parte de si, do seu valioso trabalho — uma fotografia — para ajudar os refugiados da guerra da Ucrânia em Portugal. Obrigado pela sua generosidade — a qualidade, a calma e a coragem (que também são qualidades) estão à vista. Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras, mas eu creio — e por isso vos escrevo, aos que ajudais — que às vezes as imagens pedem palavras e as palavras imagens. São forças irmãs. Palavras, neste caso, para fotografias de paz e para fotografias de guerra, como na chamada vida.

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Bolor, folhas secas, atelier 13, Lisboa, 6.1.2016 LUíSA FERREIRA

Olhos são buracos de filtrar tragédias num fio de luz, um dia, as nossas. A câmara do fotógrafo também, o mundo entra nela por um buraquinho, iluminado por quem o olhou primeiro. Não vou dizer disparou, nestes dias não me apetece.

O sofrimento dos outros também é nosso. Somos uma só humanidade, não concordam? E hoje está em causa a liberdade contra a tirania e a força bruta.

Sou, imagino, dos últimos testemunhos portugueses de um mundo que acabou. Há cinco meses, em Dezembro de 2021, estive em trabalho na Sibéria, em São Petersburgo, em Moscovo.

Imaginei esta calamidade? Nem eu, nem os meus amigos russos democratas, cidadãos da Europa obrigados de repente ao silêncio ou a 15 anos de prisão. Vi, de um balcão dourado do Bolshoi, os preparativos para o ensaio geral da peça que estreava no maior teatro do mundo, em Dezembro. Estavam a pendurar os sinos gigantes da ópera Ivan, o Terrível, de Prokofiev. O compositor não tem culpa nenhuma, claro, nem os artistas a quem tanto devemos — sou muito grato aos escritores russos e ucranianos, e sempre os lerei — mas eram sinos de guerra e não sabíamos. As badaladas do terrível Putin, que acabará afogado no sangue dos outros e também no seu.

Dois encenadores russos que denunciaram a guerra foram agora afastados e os seus bailados proibidos no Bolshoi. Para os russos e ucranianos que acreditam na cultura, na paz, na democracia, no respeito entre os povos e na resistência, as minhas saudações.

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Mal a guerra na Ucrânia rebentou, a 24 de Fevereiro de 2022, um homem passou a ser odiado em quase todo o mundo. Ao invés, a contrastar com todos os impropérios que se desejam a Vladimir Putin, o amarelo e azul, cores da bandeira ucraniana, tornaram-se símbolos da luta pela paz. Slava Ukraini! António Pedro Santos

Abyssus abyssum invocat

O abismo chama o abismo, isto também me ensinou o meu pai, dos antigos. Foi o abismo que se aproximou de nós subitamente, não o contrário. O ódio é uma herança para filhos, netos, bisnetos, como uma casa que cada vez fica em pior estado, a chover pelo telhado, as janelas esventradas, as paredes ruídas, mas continua na estrada a mostrar-nos que um dia alguém a ergueu. A guerra constrói ódios e destrói casas e corpos. A generosidade e o respeito entre os povos é que deviam ser hereditários. Mas quantos milhares de casas já explodiram na Ucrânia, quantas agora mesmo? O sofrimento humano é muito difícil de medir. Também isso nos mostram as extraordinárias fotografias desta espantosa exposição.

Andamos sempre a dizer nunca mais, nunca mais, uma e outra vez nunca mais.

Parece às vezes que o que fazemos contra a guerra não serve para nada, mas algum nada temos de fazer.

Tal como a fotografia, também a guerra parece feita de luz. E depois som. Destruir são segundos; construir, toda a vida.

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Bolama, Guiné Bissau. Missão da AMI na luta contra o vírus Ébola. 2014 Alfredo Cunha

A morte vem do ar, a pique do céu, ou na horizontal, a bala da espingarda automática furando homens, mulheres, crianças. É difícil não ser hiperbólico quando há massacres, perdoem.

Deixem-me frisar o meu respeito total pelos fotógrafos e jornalistas que estiveram ou estão agora na Ucrânia. A ver, a registar e a contar-nos o que se passa. Nas cidades, a guerra define-se nas esquinas. Ali morre-se com bala, aqui não. Mas de súbito vem do céu uma bomba e morre-se na mesma, é o telhado, a parede pulverizada, os estilhaços de metal. Há 30 anos, vi por dentro o cerco de Sarajevo, a guerra da Bósnia, uma das últimas vezes que dissemos na Europa nunca mais, nunca mais. Na Ucrânia nem consigo perceber a escala: em três meses, neste vórtice de dias colados, quantas Sarajevos cabem na Ucrânia?

Há conversas de onde não se regressa. Mas, um dia, muitas destas fotografias serão apenas testemunhos do passado: a paz regressará. Com a ajuda da intuição de cada um, do coração que nos faz agir. Comprem as fotografias e ajudem. Viva a Ucrânia livre. Diakuyu.

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O dono de uma rede centros comerciais e supermercados dá no seu centro comercial formação de primeiros socorros e tiro de forma a preparar a população para a chegada dos russos, em Lutsk, Ucrânia TIAGO MIRANDA
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Chita fotografada através de binóculos no Kruguer Park, África do Sul. 2016 Ana Brígida
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