Descoberto em corais um composto químico que pode tratar o cancro

Encontrada a fonte de um químico natural procurado por investigadores há 25 anos. O composto, que pode ser útil em terapias oncológicas, afinal é mesmo produzido por corais marinhos

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O composto químico com potencial terapêutico foi indentificado numa espécie de coral não rígido na Flórida Bailey Miller/DR
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O cientista Paul Scesa encontrou o composto químico numa espécie comum de coral flexível que vive na costa da Flórida Paul Scesa/DR

Os cientistas procuram há 25 anos a fonte de um químico natural que se revelou, em estudos preliminares, promissor para tratamentos contra cancros. A caça a esta possível droga oncológica acabou: investigadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos (EUA), afirmam ter identificado os corais que fabricam o composto tão desejado. A descoberta está descrita num artigo publicado, esta segunda-feira, na revista científica Nature Chemical Biology. Esta pode ser uma das muitas respostas para a saúde humana que se encontram no fundo do mar.

A identificação do coral que produz o químico em questão foi essencial para que a equipa de Utah pudesse estudar o código genético do animal e, assim, conseguir desenhar um plano para sintetizar o composto. Trata-se de um coral flexível, daqueles que “dançam” na água e se parecem com plantas subaquáticas. Munidos das “instruções” presentes no ADN destes corais, os cientistas puderam dar os primeiros passos para recriar em laboratório as moléculas tão procuradas.

Esta descoberta abre caminho para a produção em larga escala do composto considerado promissor para tratamentos oncológicos. Até hoje, o produto químico não foi submetido a estudos rigorosos porque não havia quantidade suficiente para testá-lo. Só depois de conduzir estes tais ensaios será possível dizer se a molécula é ou não uma ferramenta eficaz no combate ao cancro. Para já, os autores do estudo tiraram do caminho um grande obstáculo: agora já se sabe como “imitar” os corais e fabricar o volume necessário da substância.

“Compreendendo como os compostos são produzidos, torna-se possível usar esses genes para fazer os compostos em laboratório usando biologia sintética. Ao fazer esses compostos em laboratório, abre-se caminho para um abastecimento seguro que é essencial para futuras avaliações de drogas [oncológicas]. E, se o medicamento for bom o suficiente, para ensaios clínicos e uso humano”, explicou o cientista Eric Schmidt ao PÚBLICO, por e-mail. Schmidt é professor de química medicinal na Universidade de Utah e liderou a investigação com os cientistas Paul Scesa (primeiro autor) e Zhenjian Lin.

Eleuterobina, a “defesa” dos corais flexíveis

Os corais flexíveis só conseguem sobreviver sem um esqueleto externo resistente graças a uma pequenina molécula que faz parte do grupo dos diterpenos (mais precisamente a eleuterobina). Elas protegem estes animais afastando os predadores que tentam comê-los. Isto acontece que porque a eleuterobina desestabiliza os citoesqueletos, que são estruturas que dão sustentação às células. Ela é, portanto, numa lógica evolutiva, um mecanismo molecular de defesa que foi seleccionado para enganar outros animais famintos e, por isso mesmo, consiste num composto facilmente digerível. Então, as drogas derivadas destas substâncias talvez possam ser dadas aos pacientes oncológicos no formato de uma pílula. Os cientistas consideram a via oral uma vantagem em comparação com fármacos injectáveis ou outros meios invasivos.

“Esses compostos são mais difíceis de encontrar, mas são mais fáceis de fazer em laboratório e mais fáceis de tomar como remédio”, diz Schmidt, citado no comunicado de imprensa. Os corais que não são rígidos podem ter milhares de compostos semelhantes a drogas que podem funcionar como agentes anti-inflamatórios ou antibióticos – e, também por isso, estes animais subaquáticos têm despertado o interesse dos cientistas.

Cientistas à caça da eleuterobina

As propriedades anticancerígenas da eleuterobina foram descritas pela primeira vez nos anos 90, quando cientistas estudaram a presença do composto em corais raros perto da costa australiana. Estudos laboratoriais feitos na altura mostraram que, além de afugentar potenciais “comedores” de corais, os diterpenos também tinham o formidável dom de inibir o crescimento de células oncológicas.

Nas décadas seguintes, a comunidade científica andou à procura de uma forma de obter a eleuterobina na quantidade necessária para desenvolver medicamentos. Mas como não compreendiam como o composto era produzido, nunca tiveram sucesso na caça à molécula. A teoria em voga na altura era a de que o produto químico seria sintetizado por organismos que viviam em regime de simbiose com os corais flexíveis.

Paul Scesa julgava que a hipótese aventada “não fazia qualquer sentido”. Isto porque ele e Eric Schmidt já haviam reparado que algumas espécies de corais flexíveis apresentavam compostos químicos da mesma “família” mas, curiosamente, não contavam com organismos simbióticos. “Estava claro para nós que eram os corais a produzir eleuterobina”, diz o cientista, citado no comunicado de imprensa.

O autor principal do estudo encontrou o composto há muito procurado numa espécie comum de coral flexível que vive na costa da Flórida. A descoberta foi feita, por coincidência, numa zona que fica a menos de dois quilómetros do apartamento do irmão de Scesa. Ele, que cresceu na Flórida e tinha o mar como segunda casa, não pensou duas vezes na hora de escolher a carreira científica: abraçou a química orgânica e usou esta ferramenta académica para compreender a diversidade marinha à escala molecular. Quando passou a integrar a equipa de Eric Schmidt, assumiu a missão de caçador da eleuterobina e começou por explorar as espécies de corais que já conhecia de cor.

O jovem investigador viajou da Flórida até Utah com pequenas amostras vivas de corais e arregaçou as mangas. O objectivo era descobrir se o código genético do animal continha, de facto, instruções para fazer o tal composto. Embora hoje seja relativamente fácil sequenciar o código genético de qualquer espécie, continua sendo um desafio identificar no meio de tanta informação onde estão as “instruções” para fabricar um determinado produto químico. “É como entrar no escuro e procurar uma resposta onde não se conhece a pergunta”, comenta Schmidt.

A solução foi procurar em regiões do ADN de coral que se assemelhavam a “instruções” genéticas para tipos semelhantes de compostos de outras espécies. Depois de programar as bactérias cultivadas no laboratório para seguir a “receita” molecular, os microorganismos foram capazes de replicar os primeiros passos de fabrico do composto com potencial terapêutico. Estas etapas demonstraram não só que estes corais são mesmo a fonte de eleuterobina, mas também que é possível sintetizar o composto em laboratório. O próximo desafio da ciência é clarificar quais são os restantes passos para completar a “receita” para produzir eleuterobina e, assim, determinar qual é o melhor método para produzir esta possível droga oncológica em larga escala.

Paralelamente, uma outra equipa da Universidade da Califórnia, também nos EUA, mostrou de forma independente como os corais são capazes de produzir moléculas semelhantes. A investigação liderada por Bradley Moore, do Instituto Scripps de Oceanografia daquela instituição, também foi publicada esta segunda-feira no mesmo número da Nature Chemical Biology.

Potencial do ecossistema marinho

Ao contrário dos corais rígidos, que têm sido duramente afectados pelo aumento da temperatura dos oceanos e pela acidificação das águas marinhas, as versões “moles” deste animal não estão em risco nem estão a ser vítimas de lixiviação. “Os corais moles ainda estão indo muito bem neste ambiente actual, embora estejam recebendo menos atenção do que os corais duros”, afirma ao PÚBLICO Schmidt, que espera que a investigação nessa área contribua para sensibilizar “para a incrível e crucial biodiversidade nos oceanos”.

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Eric Schmidt e Paul Scesa aventaram a hipótese de o composto químico ser produzido pelos próprios corais (e não por organismos simbióticos) Kristan Jacobsen/DR

“Tantas possíveis drogas poderão ser encontradas em animais marinhos, só este ângulo já seria suficiente motivo para preservá-los – isto para não falar de aspectos mais importantes, como o valor intrínseco dos animais e papel que têm na manutenção de um ecossistema no qual a vida humana é possível”, acrescenta o investigador.

Os corais não são os únicos animais marinhos que encerram substâncias com potenciais terapêuticos. “Muitos habitats oceânicos estão passando por graves perturbações devido às mudanças climáticas. Num recife de coral funcional, a complexidade biológica é inacreditável. Esta sofisticação biológica é parte do que levou a tantos produtos farmacêuticos em potencial nos habitats oceânicos. Quando esses habitats são degradados, as interacções complexas entre as espécies desaparecem. Muitos dos animais e seus compostos com potencial farmacêutico também podem desvanecer”, afirma Schmidt ao PÚBLICO.

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