Com as “dores do povo”, a angolana Joice Zau faz arte — e chegou ao campeonato de poesia falada

Entre a Engenharia e as Letras, a poetisa e activista é campeã de poetry slams com poemas que criticam o governo angolano. Será a primeira angolana a participar no campeonato mundial de poesia falada.

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Joice Zau será a primeira angolana a participar no campeonato mundial de poesia falada, marcado para Setembro em Bruxelas e, embora tenha também convite para outra competição internacional, poderá não conseguir ir por falta de apoios.

A poetisa e campeã de poesia falada ganhou visibilidade com poemas críticos do Governo angolano, mas prefere intitular-se “artivista” porque “pega nas dores do povo e, juntamente com as suas dores, faz arte”. Nascida em Cabinda há 25 anos, a segunda de seis irmãos, Joice Zau viveu no Kuanza Sul e estudou engenharia em Luanda, onde agora vive.

Em 2018, começou a escrever poesia, mas foi em 2020 que ganhou visibilidade, com o poema Em 2022 vão gostar, inspirado na campanha de oposição ao Presidente João Lourenço “JLo Em 2022 vais gostar”.

O poema declamado num poetry slam (um concurso de poesia falada) foi transmitido por uma televisão privada em Angola e depois divulgado nas redes sociais. Chamou a atenção pela forma emotiva como é interpretado, mas sobretudo pelo conteúdo, que, embora sem referência a nomes, é uma crítica ao Governo angolano e uma referência às eleições presidenciais de Agosto deste ano.

“É injusto que a bandeira que um dia erguemos continue a debotar o sangue das nossas dores e evapore os nossos sonhos”, diz um dos versos do poema, que acrescenta: “Já não temos pin nem puk. Angola está bloqueada. Não há luz no fim do túnel”.

Zau recorda que foi escrito na pandemia, que em Angola viu “vários direitos serem violados”. “Foi uma fase em que houve muitas manifestações, inclusive a morte do Inocêncio de Matos, um activista que foi morto numa manifestação, e várias violações de direitos humanos. As senhoras eram espancadas. Matou-se um médico por não usar máscara”, lembrou, referindo ainda o caso das mulheres que trabalham no mercado informal, que foram impedidas de vender e ficaram “em casa, a passar fome, os filhos a morrerem”.

“Foi um poema que trouxe bastante visibilidade e trouxe também alguns problemas”, diz Joice Zau, em entrevista à Lusa. A “artivista” conta que soube que “esse poema chegou aos órgãos do Estado” e surgiram fake news de que estaria a ser financiada por Tchizé dos Santos, filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos.

“A minha família ficou obviamente assustada e acabaram-me assustando também. Inclusive eu tive de ficar duas semanas em casa trancada sem sair. Os meus familiares não me deixaram sair, fiquei sem telefone, ninguém conseguia-me localizar”, relata.

Ainda assim, Joice recusa parar de escrever e declamar a sua poesia, porque parar significa “dar mais espaço para que essas ditaduras e essas opressões continuem”.

Além disso, com o crescimento do poetry slam em Angola e da sua influência nos jovens dos bairros periféricos, a activista sente-se uma referência: “Se eu deixo de o fazer (...) não consigo mais influenciar outras meninas e assim a revolução acaba por atrasar”.

O “slam” de São Paulo qualificou-a para o campeonato nacional brasileiro de poesia falada e Joice Zau acabou por ganhar o campeonato nacional brasileiro, pelo que passou a representar o Brasil nas competições internacionais. “Estávamos todos em casa e eu fui participando online. [Os slams brasileiros] abriram oportunidades para todos os falantes de língua portuguesa e eu fui participando, ganhei algumas edições mensais, classifiquei-me para o slam de São Paulo, e acabei por ganhar também”, recorda.

Após representar o Brasil na Copa América de Slam, que aconteceu em Novembro no Rio de Janeiro, e ter ficado em segundo lugar, a angolana foi automaticamente seleccionada para participar no campeonato do mundo, onde irá representar Angola e Brasil.

Zau, que é também campeã do Slam Delas, destinado a mulheres de língua portuguesa e com organização brasileira, foi também convidada a participar num outro campeonato no final de Maio em Paris, o Grand Slam Internacional de França, mas não deverá conseguir participar.

“O campeonato brasileiro tinha-me garantido apenas a viagem para a Bélgica, mas infelizmente este de França eu teria de arcar com as condições da viagem”, disse à Lusa. Apesar de ter contactado o Ministério da Cultura de Angola, o Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, o Centro Cultural Brasil Angola e até a União Europeia, a poetisa não conseguiu obter apoios que lhe permitam viajar para Paris.

Para Joice, campeã do concurso brasileiro de “poesia falada” e vencedora do concurso do género para mulheres lusófonas, este movimento de spoken word acaba por ser “uma nova modalidade em que as mulheres conseguem se expressar, falar dos seus problemas, falar da violência doméstica e do abuso sexual, da violência infantil”.

Embora não se veja como dirigente política no futuro, acredita que pode “incentivar outras meninas a se atreverem” e “a sonharem por exemplo em serem Presidentes, em serem ministras ou governadoras”. Os slams são também “palcos de crítica institucional, de prática política, de fomento de talentos periféricos”, defende.

“Sempre que eu vou numa comunidade para declamar, eu aproveito sempre para problematizar situações políticas e sociais, porque eu acho que, numa altura como essa, é o dever do artista”, explica.

Ainda sobre o título do poema que lhe deu visibilidade, Joice diz esperar que, em 2022, “os angolanos venham a gostar de uma alternância política, porque há muito que se deseja isso”. “Infelizmente, em 46 anos os angolanos não conseguem saborear uma alternância política ou governativa, então em 2022 eu espero que os angolanos tenham o privilégio de experimentar novos modelos de governação”, refere, reconhecendo, no entanto, que isso “será um pouco difícil”.

“Sabemos como é o sistema que nos governa. Provavelmente já devem estar a ser montadas fraudes eleitorais, porque é o que acontece sempre”, lamenta. Zau acredita que nos últimos anos houve “algum progresso no que concerne à consciência cívica dos angolanos”, mas ainda assim quer levar a sua arte mais além.

“O spoken word é uma arte bastante atractiva, uma arte urbana, a juventude consegue logo identificar-se com essa expressão artística. Eu gostaria de usar as vantagens dessa arte para poder ir atiçando a consciência das comunidades, principalmente as comunidades periféricas de Angola”, conclui.

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