Portugal tem mais dois linces-ibéricos em liberdade: a Sidra e o Salao

O lince-ibérico estava quase extinto no final da década de 1990 (havia menos de uma centena de indivíduos restantes), mas agora existem cerca de 1100 na Península Ibérica, 200 deles à solta em Portugal. Esta terça-feira foram devolvidos mais dois linces à natureza, que têm conseguido alargar a sua zona de distribuição.

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Libertação de linces aconteceu esta terça-feira, entre Pereiro e Fonte Zambujeiro de Cima (Alcoutim) Daniel Rocha

Foi a correr que dois linces-ibéricos deixaram as jaulas para trás e se encontraram com a liberdade. Num descampado perto de Alcoutim, no Algarve, os linces chegaram numa jaula, tapados com um pano verde – com uma abertura suficiente para que fossem espreitando as centenas de pessoas que os observavam e fotografavam nesta terça-feira. O primeiro lince, o macho Salao, teve uns segundos de hesitação quando o ministro Duarte Cordeiro lhe abriu a porta da jaula. Não tardou muito até que, com a elegância dos felinos, corresse uns metros para a frente. Quando pára, já está longe. Ainda fica a olhar uns segundos para o horizonte da sua nova casa, enquanto abana o rabo curto, como que a acostumar-se. E segue caminho, até desaparecer por entre os arbustos.

Enquanto o lince dava as primeiras passadas em liberdade, a fêmea Sidra, de pintas no pêlo mais pequeninas, esperava ainda numa jaula na carrinha do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Desconfiada, dava voltas dentro da jaula enquanto era transportada para o meio do descampado, por baixo de um céu a ameaçar chuva. Assim que a porta se abriu, não houve qualquer momento de espera: a sua fuga foi bem mais rápida do que a de Salao e, enquanto corria, a poeira levantava-se sob as suas patas. Foram precisos menos de 15 segundos até que desaparecesse no meio da vegetação. Quem sabe para perto de Salao, com quem não tem qualquer grau parentesco.

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Estes dois linces pertencem a uma espécie ameaçada. Em 1990, já poucos linces-ibéricos restavam. Foi por isso que há uns anos se decidiu fazer a reintrodução da espécie na natureza e, desde aí, já se contam 209 linces à solta em território nacional. Este casal de linces é o segundo a ser libertado no Algarve. Antes, só o faziam no Alentejo. “Queremos acreditar que todo o trabalho que foi feito vai permitir dizer que o lince foi salvo da extinção”, comenta o presidente do ICNF, Nuno Banza. Mas é um processo “instável”. É preciso que os habitats estejam em boas condições, que haja alimento (sobretudo coelho bravo, a presa preferida dos linces), que haja água, que não sejam caçados ou atropelados. E, acima de tudo, “precisamos de tempo”, diz.

O regresso dos linces à natureza tem sido um “programa de muito sucesso”, conta o ministro do Ambiente e Acção Climática, Duarte Cordeiro, que herdou a pasta há pouco mais de um mês e esteve em Alcoutim numa das suas primeiras acções no terreno. “No final dos anos 90 tínhamos cerca de 100 linces ibéricos e agora são cerca de 1100 entre Portugal e Espanha”, refere. Por isso, “podem servir de exemplo para outras espécies”, e há que “continuar a apostar na conservação da natureza”.

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Os linces levam uma coleira com radiotransmissores para que possam ser acompanhados à distância nos primeiros tempos, o que permite avaliar a evolução de toda a população de linces-ibéricos. A decisão de soltar linces no Algarve foi tomada depois de se ver que os próprios linces começavam a dirigir-se para aquela região, onde tinham encontrado “condições para se reproduzir e para correr”, diz Nuno Banza.

Em Fevereiro deste ano, no dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, tinham sido libertados dois outros linces na mesma zona, a uns cinco ou seis quilómetros dali: o Sismo e a Senegal. Os nomes começados pela letra S não são fruto do acaso: são da mesma geração, cuja nomenclatura vai seguindo uma ordem alfabética.

Maria Antonieta Gonçalves, de 69 anos, é a proprietária do descampado em que foram agora libertados os dois linces-ibéricos, um terreno que só é utilizado para ter algumas sementes para gado. Nunca tinha visto nenhum lince ao vivo, “só na televisão”, e foi uma das escolhidas para ajudar a levantar a porta da jaula da fêmea Sidra. Desvaloriza o facto de ter sido esta a zona escolhida: “Nalguma terra tinha de ser”. Desde que os linces “não façam mal aos animais”, não haverá problema. Mas não será promessa fácil de cumprir, já que os linces são carnívoros e gostam sobretudo de coelhos. Depois de ver o lince de perto pela primeira vez, Maria Antonieta é lacónica: “Gostei.”

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O equilíbrio com o ecossistema e com as outras espécies foi um dos motivos para que fosse assinado, antes da libertação dos linces-ibéricos, um acordo de colaboração entre o ICNF e a Zona de Caça Turística do Pereiro.

Criados por humanos, mas longe deles

Ainda que o percurso dos linces rumo à natureza fosse curto, a viagem destes felinos pardos de “barbas” e “pincéis” de pêlo preto nas orelhas já ia longa: vieram na terça-feira de um centro em Cáceres, em Espanha. Sendo este um lince ibérico, a coordenação é feita entre os dois países. Há crias que nascem em Portugal que são libertadas em Espanha e crias de Espanha largadas em Portugal, como estes dois linces de cerca de um ano, que vieram do Centro de Cría del Lince-ibérico de Zarza de Granadilla. Para os linces não há propriamente fronteiras e a diversidade genética é um “aspecto muito relevante nesta espécie, porque só com essa variabilidade se podem consolidar enquanto espécie”, explica Nuno Banza. Assim, há mais hipóteses de sobrevivência, com menos consanguinidade e menos doenças.

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Outro dos factores que aumenta a sobrevivência desta espécie na vida selvagem é o contacto quase nulo com humanos nos centros de treino. São mesmo treinados para ter medo dos humanos, porque tal pode constituir um risco quando estão à solta (ao facilitar que sejam apanhados, por exemplo). Nestes centros, a comida não lhes é oferecida – os linces-ibéricos são treinados para caçar, num ambiente similar ao que encontrarão ao ar livre. Não podem associar pessoas a alimento porque o objectivo, explica o presidente do ICNF, é mesmo a “reintrodução natural” desta espécie.

É isso que tem sido feito no Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico, em Silves, a cerca de 70 quilómetros de onde foram libertados Salao e Sidra. O complexo de treino e recuperação do lince ibérico, que teve um investimento de cerca de 600 mil euros, foi apresentado esta terça-feira e teve também a visita do ministro Duarte Cordeiro. Houve uma parte deste centro que ardeu com o incêndio de Monchique, em 2018, mas conseguiram salvar os linces (que tiveram de ir para Espanha) e algum equipamento.

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Numa das primerias acções no terreno, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, assistiu à libertação dos animais Daniel Rocha

Nas instalações, os linces são vistos somente ao longe, através de câmaras de vigilância. Conseguimos espreitá-los: uns descansam, outros lambem-se, outros passeiam-se pelos cercados, duas crias dormem entrelaçadas enquanto a progenitora se ausentou da casota. De momento, existem 33 linces neste centro: 23 adultos e dez pequenos.

O propósito é garantir que têm as condições para ser libertados na natureza: que estão bem de saúde, que sabem caçar, que têm capacidades sociais com outros linces. A viagem para a salvação dos linces-ibéricos tem sido de sucesso, mas há ainda muito caminho a trilhar. “Parece que são bichos que se querem extinguir”, ri-se o director do centro, Rodrigo Serra. E explica: só se reproduzem uma vez por ano, quase só comem coelhos que são cada vez menos, e “lutam até à morte aos 60 dias” com os seus irmãos. E brinca: “Se não fôssemos nós já tinham ido.”

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