Ruas sem sentido

A finitude é uma sirene que ecoa na nossa consciência.

Foto
Mag Rodrigues Mag Rodrigues

Os cães morreram à fome, mas antes dos cães foram os donos.

Havia papel de parede bonito, agora rasgado e cuspido de sangue. Meias cobrem pernas inertes. O verniz vermelho, outra vez cor de sangue, nas unhas da mulher que um dia pôde fazer par com a vaidade e que agora está nas fotografias sem rosto. Só as mãos de que tanto cuidou em vida. Regressava a casa numa breve ida à rua vigiada e, sem tempo para processar o fim, acabou atirada para o chão ainda com neve. Dias depois estaria à frente dos nossos olhos, numa notícia que o mundo viu. Tantas fotografias sem rosto. Tantos bocados de vida iguais aos nossos.

O céu está sempre cinzento como se o chumbo das armas tivesse devorado todas as possíveis cores que dão razão à nossa existência. A vida são as árvores, o barulho, às vezes, dos riachos, outras vezes dos carros, e depois as pessoas, a campainha das bicicletas, os gatos vadios, as lojas com donos. Tudo foi destruído e no ar ficou o cinzento-baço que nos deixa uma incapacidade de sermos nós outra vez.

Há quanto tempo deixámos de ser como já fomos?

As imagens da guerra não a banalizam: põem-nos a nós e aos nossos filhos em todos os lugares onde já só mora a dor. Uma doença mais fatal em que todos os dias acordas, vais ver se já se fez luz e concluis que o céu está ainda mais carregado.

É possível que passemos pelos dias de formas diferentes. Alguns de nós evitam falar do assunto não encontrando nomes nem sítio para alojar a dor. Outros falam de números. A outros tentamos perdoar a incapacidade de ver com nitidez a repetição da História.

Aquele papel de parede de um quarto onde até há semanas brincavam crianças é a imagem onde me radico para deixar entranhar a minha dor. É a proximidade que nos vulnerabiliza. É um papel de parede que podia estar aqui em casa ou na tua. Agora, tem nele inscrito o ódio onde antes houve o riso.

E se a mobília desta sala estivesse a aparecer na televisão? Os quadros caídos. As paredes trituradas. As camas de um sono que já não se dormiu. As fotografias de dias felizes no telemóvel que te fazem perceber que um dia a vida foi habitada pelos teus sonhos e conseguiste, até, encontrar o papel de parede que querias para o quarto dos teus filhos. O que restou desse papel vai ser arrancado, e nada, ou quase nada, ficará para contar a história dos miúdos que nunca perceberam que estavam a um fio de ter a vida interrompida.

Somos insensíveis porque estamos a tomar somente as dores de gente com vidas como as nossas? Então e todos os que morreram sem direito a fotografia, mais longe, e foram notícia no amontoado de números que os jornais somaram? Esses não nos doem?

É a proximidade que nos enfraquece, como a luz que nos fere os olhos quando a ela nos chegamos.

A proximidade da guerra traz com ela o assalto da finitude. O que farias? Levavas o quê? Pegavas numa arma? O que dirias aos teus filhos no dia em que já não pudessem mais brincar no quarto com o papel de parede onde tantas vezes tentaram desenhar?

Numa localidade a que só as notícias dão nome, os cães morreram à fome porque ninguém lhes pôde dar comida.

Antes dos cães foram os donos. Talvez os cães tivessem pressentido o perigo, mas já ninguém podia escapar.

Não tento adivinhar o cheiro da morte que cobre as ruas que um dia tiveram sentido, mas olho agora para esta casa e percebo-a tão frágil como o mundo. Os risos das crianças já não serão garantia de nada. O mal invade-nos de uma forma que quase nos impede de viver.

Banais são agora os nossos gestos quando ensaiamos a pose para fazer de conta que o mundo ainda é o mesmo.

A finitude é uma sirene que ecoa na nossa consciência.

Sugerir correcção
Comentar