Quantos votantes queremos? E votos brancos e nulos?

O simples facto de mais de 30% dos votos apurados serem nulos na votação repetida não pode deixar de fazer soar as campainhas de alarme.

Em 11 e 12 de Março passado foram repetidas as eleições legislativas para o círculo eleitoral da Europa. Muitos recordar-se-ão de que houve necessidade, por decisão do Tribunal Constitucional (TC), tomada por unanimidade (Acórdão 133/2022, de 15/02), de se proceder à repetição da votação para apuramento final dos resultados de 30 de Janeiro, em resultado dos erros de escrutínio e da anulação de uma parte substancial dos votos apurados na primeira consulta.

Agora que os deputados eleitos para a XV Legislatura e os membros do XXIII Governo Constitucional foram investidos nas suas funções, convém que não se perca de vista o problema que motivou o atraso do processo eleitoral – com elevados custos políticos, eleitorais e económicos – e se continue a reflexão anteriormente iniciada.

Quando suscitada a intervenção do TC, sabíamos que no círculo eleitoral da Europa havia 926.376 inscritos, dos quais votaram 193.349. Deste universo apenas 116 corresponderam a eleitores presenciais. Se compararmos estes números com os resultantes da repetição, vemos que nesta votaram 109.350 eleitores, isto é, menos 83.999. Em contrapartida, foram 152 os que da segunda vez votaram presencialmente, o que para o que importa é irrelevante.

Aqui valerá sim a pena sublinhar, para além da diminuição do número absoluto de votantes, o aumento da abstenção, que cresce de 79,13% para 88,10%. À abstenção juntar-se-á a diminuição significativa dos votos em branco, que passam de 2764, equivalentes a 1,43%, para 711, ou seja, 0,65%, e, mais importante, o crescimento absolutamente desconcertante dos votos nulos. De 3372 (1,74%), em Janeiro, os nulos elevam-se no final a 33.565 (30,46% dos votos totais expressos em urna).

Se em Janeiro os dois deputados a eleger por este círculo iam ser repartidos entre PSD e PS, em Março foram ambos atribuídos ao segundo. Noutras circunstâncias isto poderia ter tido consequências graves para a governabilidade.

Refira-se, ainda, que para o mesmo círculo eleitoral, e sem curar das alterações operadas, entretanto, nos cadernos de recenseamento, a percentagem de votos nulos nas legislativas de 2019 foi de 24,75% e a de votos em branco de 1,54%.

Recuando um pouco mais, verifica-se que em 2015 os nulos corresponderam a 10,92% (1.492 votos) e os brancos a 0,77% (105 votos). Quatro anos antes, em 2011, os nulos representaram 12,05% (2.161 votos) e os brancos 0,90% (161 votos). Em 2009 os nulos atingiam 15,5% (2.651 votos) e os brancos 0,7% (117 votos). Finalmente, a percentagem de votos nulos foi em 2005 de 8,4% (1.968 votos) e a de brancos de 0,43% (101 votos).

Uma primeira análise dos números revela, desde logo, que tendo havido uma alteração à lei eleitoral em 2018, houve mais do que uma duplicação da percentagem de votos nulos nas legislativas de 2019 e 2022 no círculo eleitoral da Europa.

Ressalta, igualmente, a disparidade entre o número de votos nulos nas eleições de 30 de Janeiro, que representavam menos de 2% e aumentaram para quase 1/3 do total dos votos expressos, sendo ademais curioso comparar a diferença entre o valor percentual de votos nulos neste círculo com a percentagem de nulos nos demais círculos nacionais, onde essas percentagens oscilaram entre 0,70%, em Évora, e 1,82%, na Madeira. Só no círculo Fora da Europa é que a percentagem de votos nulos ascendeu a 2,96%.

Há diversas formas de olhar para estes resultados. As explicações podem ser de diversa índole e só numa análise mais fina será possível tentar chegar a conclusões.

Muitos autores que se dedicam ao estudo da participação eleitoral preocupam-se mais com os votos validamente expressos, com a abstenção e a explicação das suas condicionantes do que com os votos inválidos (Lundell e Högström, 2021). Estes podem ser de diversa natureza e como tal são catalogados por alguns pelo acrónimo “BNS” (blanks, nulls e spoiled ballots), onde se incluem brancos, nulos e inutilizados (R. Michael Alvarez et al., 2018). A nossa lei eleitoral distingue apenas entre brancos e nulos (art.º 98.º), correspondendo os primeiros aos boletins que entraram em urna sem nada escrito. Todos os demais, seja por preenchimento incorrecto, corte, rasura, inserção de desenhos ou palavras, são tratados como nulos.

Em todo o caso, o voto nulo pode resultar de erros de preenchimento, por parte do votante ou das tecnologias a que se recorra, ou de decisões intencionais dos próprios eleitores. Como podem ser uma consequência do funcionamento das leis eleitorais e das instituições. Alguns estudos apontam a obrigatoriedade do voto como responsável por altas taxas de votos nulos; outros referem o sistema bicameral, a desproporcionalidade eleitoral, condições económicas deficientes, a rejeição da classe política ou até a simples desilusão com o sistema político. Num outro patamar essas razões poderão reconduzir-se à falta de informação, iliteracia, ausência de competências políticas e de experiência dos eleitores.

Sem poder aqui entrar em mais detalhes, até porque não sabemos se a baixa taxa da primeira votação, bem mais de acordo com os valores registados nos restantes círculos em que não houve repetição, resultou de terem sido contados como válidos votos que conduziriam à anulação da eleição, ou se a percentagem de votos nulos correspondeu a algumas das outras razões em tese possíveis, limito-me, aqui, sobre este ponto, a equacionar hipóteses.

O apuramento das verdadeiras causas que conduziram a este desfecho será realizado noutra sede, mas o simples facto de mais de 30% dos votos apurados serem nulos na votação repetida não pode deixar de fazer soar as campainhas de alarme. No rescaldo das presidenciais francesas de 2017, com mais de 4 milhões de brancos e nulos (11,3% dos votantes) na 2.ª volta, Moualek considerava existirem poucas dúvidas sobre a natureza deliberada dessa opção.

Seja qual for a razão para um número tão elevado de votos nulos naquele círculo, se a isto somarmos os mais de 5 milhões e 200 mil abstencionistas (48,54%) no cômputo geral, será fácil concluir afirmando que entre as mais prementes tarefas do novo Parlamento e do Governo recém-empossado estará a de se proceder com urgência à revisão das leis eleitorais.

Que é desejável uma unificação de regimes entre as eleições presidenciais e as legislativas não tenho quaisquer dúvidas. Que importará “desburocratizar” o actual regime das eleições legislativas, tornando-o mais amigo dos eleitores, também não. Mas o que seria verdadeiramente desejável é que os partidos políticos fossem capazes de olhar para o problema da participação eleitoral de uma forma séria e em atenção ao interesse público.

Tratando-se de uma questão de saúde do regime democrático, aqui é que será pertinente ver, sem selfies, até onde irá a “magistratura de influência” do Presidente da República.

Com uma maioria absoluta, nesta como em outras inadiáveis matérias, não há razões para que não se aproveite a legislatura para se fazerem as reformas necessárias e se produzirem as boas leis de que o país precisa. De más estamos todos fartos.

Mas, pelo sim pelo não, o melhor é começar-se já. Haja vontade e gente capaz. E antes que por qualquer imprevisível razão, ou nem tanto, como sucedeu na legislatura anterior, se precipite o final e tudo volte, com excepção dos prejuízos, a ficar no tinteiro.

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