Potenciar a fraude e a desilusão

O que está a acontecer com a discussão relativamente aos votos dos emigrantes revela bem o amadorismo e incompetência daqueles a quem os partidos entregam a gestão dos assuntos públicos.

Na manhã de 09/2/2022 fui alertado por um amigo para uma notícia que dava conta de o PSD ter contestado junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) a contagem de voto dos círculos da emigração. Na base da contestação estará o facto de haver sido validado o voto de emigrantes remetidos por via postal sem estarem acompanhados de cópia do cartão de cidadão.

No entender do PSD, a aceitação desses votos como válidos configura “uma fraude eleitoral” e “um crime”.

Em resposta a este protesto, da responsabilidade do deputado Maló de Abreu, veio Paulo Pisco, deputado do PS, dizer que a aceitação da validação desses votos fora decidida em reunião com a Secretaria-Geral (SG) do MAI, mesmo vindo tais votos desacompanhados da fotocópia do cartão do cidadão, e que a recusa de aceitação desses votos revela “um total desprezo pelas comunidades”. Acrescentou em defesa da sua tese que “houve mudanças na Europa sobre a utilização de dados pessoais, incluindo a proibição da transmissão por cópia dos dados do cartão do cidadão, que é punível por lei em muitos países, incluindo em Portugal”.

Para se perceber a falta de sentido da discussão e o nível da argumentação produzida e que opõe PS e PSD, convirá primeiro ver o que diz a lei.

A Lei Eleitoral da Assembleia da República (Lei 14/79), a qual foi objecto de múltiplas alterações, datando a última delas de Novembro de 2020, dispõe que têm direito de voto nas eleições para a AR os cidadãos inscritos no recenseamento eleitoral, quer no território nacional, quer em Macau ou no estrangeiro (art.º 3.º).

Quanto aos residentes em Macau e no estrangeiro – não se percebendo ainda o porquê da distinção quando Macau é há muitas décadas território estrangeiro – o n.º 4 do art.º 12.º manda que os eleitores residentes fora do território nacional sejam “agrupados em dois círculos eleitorais, um abrangendo todo o território dos países europeus, outro o dos demais países e o território de Macau, e ambos com sede em Lisboa”.

Por força do disposto no art.º 42.º, para que os eleitores residentes fora de Portugal possam exercer o seu direito de voto, são constituídas assembleias de voto nos postos e secções consulares, incluindo nos consulados honorários com competências para operações de recenseamento eleitoral, nas delegações externas de ministérios e nas instituições públicas portuguesas.

Quanto ao modo do exercício do direito de voto, os eleitores residentes no estrangeiro poderão exercê-lo presencialmente ou por via postal, desde que manifestem essa opção junto da respectiva comissão recenseadora até à data da marcação de cada acto eleitoral (cfr. art.ºs 63.º e 79.º). Os eleitores que não exerçam o seu direito de opção votam por correspondência, podendo uma opção anteriormente manifestada ser alterada, salvo no período entre a data da marcação do acto eleitoral e a sua realização.

Se quanto ao voto presencial, à partida, não se levantam dificuldades, nem dúvidas, visto que deverá exercer-se em termos idênticos aos que ocorrem no território continental e insular, desde que o eleitor manifeste a sua intenção dentro dos prazos legais, já quanto ao voto por via postal deverá o MAI proceder à remessa dos boletins de voto para todos os cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais pela via postal mais rápida, sob registo, no mais curto prazo possível, para as moradas indicadas nos cadernos de recenseamento.

O mencionado art.º 79.º esclarece ainda que cada boletim de voto é acompanhado de dois envelopes, um de cor verde no qual o eleitor insere o seu voto e que não contém quaisquer indicações, e um outro branco e de tamanho maior, de franquia postal paga, no qual é inserido o envelope com o boletim de voto, estando pré-inscrito no remetente o nome do eleitor, o seu número de identificação civil, a sua morada, o consulado e país, e no destinatário o endereço correspondente à respectiva assembleia de recolha e contagem de votos dos eleitores residentes no estrangeiro.

O envelope verde, devidamente fechado, deverá ser introduzido no envelope branco, juntamente com uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição.

A notícia referia ainda que Maló de Abreu confirmou que na primeira reunião com os representantes dos partidos e da SG do MAI, o PSD “aceitou a opção de validar os boletins de voto que não viessem acompanhados de cópia do cartão de cidadão”. Todavia, terá mudado de posição depois de consultar o seu gabinete jurídico.

Aqui chegados cumpre perguntar qual a razão da discussão entre PS e PSD. Não foi a lei aprovada por todos cumprindo as formalidades legais? E devidamente assinada, promulgada e publicada? Não será a lei suficientemente clara?

Se é verdade que a validação de votos sem que estejam cumpridos os requisitos legais é uma clara violação da lei e uma fraude, não se percebe como é possível que os representantes dos partidos em reunião no MAI admitam validar votos em situação irregular. Na fotografia ficam todos a fazer má e indecente figura, porque os argumentos agora invocados estavam lá desde o início. Isto é, desde que foi introduzida a alteração à lei que obrigou os eleitores residentes no estrangeiro a manifestaram a vontade de votar presencialmente, burocratizando o exercício do direito de voto, de cada vez que são chamados a votar, potenciando a existência de irregularidades e tornando em regime geral o voto postal que só o deveria ser se expressamente pedido por cada eleitor.

O regime apela à fraude, tanto mais que não só há quem recolha os votos de toda a família para votar por si, pelo cônjuge e pelos filhos, situações me foram confidenciadas por alguns eleitores, como ainda há quem se ofereça para recolher os votos e “ajudar” os emigrantes a remeterem o voto por via postal, e os que não tendo manifestado intenção de votar presencialmente antes do acto eleitoral foram admitidos a fazê-lo.

Repare-se, por exemplo, que o próprio site do Consulado-Geral de Portugal em Macau refere a necessidade de cada eleitor manifestar a sua opção antes de “cada acto eleitoral”, o que aliás foi confirmado pela comunicação social (“Os eleitores recenseados no estrangeiro que não tenham exercido o seu direito de opção pelo voto presencial no prazo legalmente estabelecido, até 5 de Dezembro de 2021, podem votar por via postal e devem, para o efeito, devolver a carta com o boletim de voto até ao dia 29 de [J]aneiro”, DN e Visão de 27/1/22).

Daqui é fácil concluir que quem não estiver permanentemente a manifestar a opção pelo voto presencial só poderá votar pela via postal, o que é um contra-senso e um incentivo à não participação.

A regra deveria ser sempre a do voto presencial e a opção pelo voto postal é que deveria ser manifestada antes de cada acto eleitoral. E deveria ser limitada aos eleitores que, por exemplo, vivessem a mais de 30 km de um posto ou secção consular.

O actual regime para exercício do direito de voto para as eleições legislativas por parte dos emigrantes, que é aliás distinto daquele que vigora para as eleições presidenciais, onde não está previsto o voto por via postal, não tem qualquer sentido.

Mas, infelizmente, o que está a acontecer com a discussão relativamente aos votos dos emigrantes, sem entrar aqui em mais considerações, revela bem o amadorismo e incompetência daqueles a quem os partidos entregam a gestão dos assuntos públicos e em quem os portugueses votam.

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