E se não houvesse mais histórias?

O último contador de histórias calou-se para sempre. O mundo entristeceu e não chegou a escutar o conto da caixinha vermelha.

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A partir de um desafio num curso de escrita com Margarida Fonseca Santos, em que se pedia que se falasse sobre perda, a primeira ideia que surgiu a Isabel Peixeiro foi “esta caixinha vermelha”. A partir daí, “depressa se desenhou a história, mas ficou arrumada”. Foi em 2018.

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A partir de um desafio num curso de escrita com Margarida Fonseca Santos, em que se pedia que se falasse sobre perda, a primeira ideia que surgiu a Isabel Peixeiro foi “esta caixinha vermelha”. A partir daí, “depressa se desenhou a história, mas ficou arrumada”. Foi em 2018.

No ano passado, recuperou esta narrativa sobre tradição oral, conta ao PÚBLICO via email: “Gostava de vê-la transformada em livro.” Ainda bem. “Decidi reler, remexer, mudar alguns pontos, acrescentar outros, foi um amadurecer”, descreve. Para a autora, “é uma homenagem à tradição oral, às histórias que passam de geração em geração e ao impacto que têm em nós”.

No livro, pode ler-se: “O avô tinha uma imaginação sem fim. Ele era o último contador de histórias da floresta. (…) Não havia dia que não terminasse com uma história do avô. (…) Algumas eram tristes, outras deixavam a floresta inteira a rir. Olívia gostava de todas as histórias que o avô contava. Todas, menos uma.” A da caixinha vermelha.

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“O avô tinha uma imaginação sem fim. Era o último contador de histórias da floresta” Marta Nunes

Diz-nos ainda Isabel Peixeiro, colaboradora do projecto Re Word It: “Tive a sorte de crescer rodeada de lengalengas, histórias de cabacinhas e cabações, formigas rabigas, velhinhas e irmãos; o meu avô contava-nos tantas histórias, por vezes entoadas em jeito de canção.”

Em O Último Contador de Histórias, com o desaparecimento do avô de Olívia, acabaram-se as histórias na floresta. “Sentados em volta da grande mesa, só o silêncio se fazia ouvir. (…) Andavam de olhos no chão e mãos frias nos bolsos. Por vezes, Olívia ia até ao antigo quarto do avô. Da ombreira da porta, quase conseguia ouvir a sua voz.”

Desanimada, mesmo sendo já Primavera, a menina pensava onde poderia ir buscar histórias. Acabou por descobrir. Agora, é ela quem pergunta: “Querem que vos conte o conto da caixinha vermelha? Se querem que conte, contarei; se não querem, não contarei. Querem ou não que vos conte o conto da caixinha vermelha?”

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“Agora, ninguém contava histórias. Se calhar, não sabiam onde ir buscá-las” Marta Nunes

Isabel Peixeiro venceu em 2021 o Prémio Matilde Rosa Araújo com o conto infantil Vai Subir ou Vai Descer? Quando conheceu o trabalho de Marta Nunes, através da colecção Português Suave, pensou que o seu traço “era uma extensão desta floresta de encantos”.

Sem rostos

A ilustradora conta ao PÚBLICO como não teve dificuldade em ilustrar este livro: “O texto deu-me logo imagens muito fortes para a criação de ambientes, objectos e de que forma queria abordar. Depois disso, fui adicionando e depurando ideias, algumas resultaram logo outras foram aparecendo à medida que fui avançando, mas aquilo que foram os primeiros esboços traduziram logo algumas direcções claras para o resultado final.”

Na verdade, o ambiente e a atmosfera das imagens ligam muito bem com o sentido e emoção das palavras.

Marta Nunes, formada em Arquitectura, na Universidade da Beira Interior, fez por “ampliar a narrativa, deixar espaço entre o texto e as ilustrações para que o leitor se possa posicionar dentro da história”. Por isso escolheu não representar completamente as personagens, não há um rosto, “há a sua presença, mas a intenção é que o leitor se sinta dentro de cada um dos momentos”. E sente-se.

Houve algumas discussões e trocas de ideias à volta do storyboard do livro e na definição das linhas principais, “foi um processo importante para solidificar ideias e ter referências para tomar decisões, depois disso fui trabalhando página a página”.

Sobre a técnica, descreve: “As ilustrações foram produzidas manualmente com uso de grafite, lápis de cor e ecolines e depois editadas digitalmente.”

Para Marta Nunes, a ilustração surge sempre como uma forma de liberdade e diz: “Este livro foi um momento muito feliz para mim, pois a história remete para coisas que emocionam, como a memória da minha avó materna e esse património imaterial que são as histórias de todos os nossos avós. Neste processo, revisitei objectos, lugares e pessoas, como espero que o façam quando o lerem.”

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“Olívia levantou a cabeça na direcção dos risos. Os primos brincavam alegremente com tudo o que encontravam” Marta Nunes

Andreia Salgueiro, editora da Alfarroba, achou por bem juntar estas duas linguagens “e tudo se alinhou entre conversas à distância, com partilhas sobre outros tempos, sobre memórias, recordações que se guardam no coração”.

Por isso, Isabel Peixeiro conclui: “O resultado está à vista e eu não podia estar mais feliz. Abrimos o livro, folheamos e vemos as ilustrações da Marta que dão vida às minhas palavras e contam também elas uma história que respira poesia, vemos o apoio, o encorajamento e a perspicácia da Andreia e vemos também as histórias das pessoas que nos rodeiam, que nos inspiram, que tanto nos acrescentam.” E lembra: “Cabem muitas histórias dentro de uma história, nesta não poderia ser diferente.”

Neste sábado, 2 de Abril, assinala-se o Dia Internacional do Livro Infantil. Continuamos a precisar de histórias como estas.

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