A jovem democracia portuguesa mais perto da paridade de género

Em 2022 ainda nos situamos no enquadramento jornalístico da “novidade histórica” no que diz respeito à participação política feminina

Toma posse neste 30 de março o primeiro Governo da história política portuguesa com o mesmo número de ministras e de ministros (incluindo o primeiro-ministro). O anúncio da composição ao nível ministerial do novo executivo ocorreu simbolicamente na data perfeita, 23 de março. Este foi o dia do arranque oficial das comemorações dos 50 anos do 25 de abril, quando a duração da vida em democracia superou a da existência em ditadura. É curioso este sentir de que a nossa democracia ainda é jovem, ao passo que a ditadura, quando acabou, mais ou menos com a mesma idade, estava decrépita.

Uma das características do período anterior à revolução consistia no imobilismo dos modelos e papéis sociais de género e no anacronismo de leis que mantinham as mulheres em posições subordinadas e subalternas em relação aos homens. A matriz constitucional herdada do 25 de abril assenta no princípio da igualdade, o que inclui a igualdade entre homens e mulheres. No entanto, seria longo este caminho em direção à igualdade de género nas mais diversas áreas, com destaque para a política, cujos inexplicáveis desequilíbrios, à medida que as mulheres adquiriam mais habilitações e qualificações, aconselhou a adoção de mecanismos de ação positiva.

Quando nasci, em junho de 1975, estava no poder o IV Governo Provisório, o terceiro liderado por Vasco Gonçalves. Nenhuma mulher integrava este coletivo como ministra. Aliás, nos seis governos provisórios, apenas em dois uma mulher ocuparia uma posição ministerial: Maria de Lourdes Pintasilgo, com a pasta dos Assuntos Sociais. Teríamos de aguardar até 1985 para uma mulher integrar um Governo constitucional como ministra, Leonor Beleza, na Saúde. Enquanto crescia, foi inevitável a compreensão da política como clube masculino, como atividade de homens, apesar de, entre as minhas primeiras memórias políticas, recordar gratamente a candidatura de Lourdes Pintasilgo às eleições presidenciais de 1986. Seria necessário esperar 30 anos para que de novo uma mulher voltasse a concorrer a este sufrágio. Aos olhos de uma criança de 10 anos, Lourdes Pintasilgo foi uma figura absolutamente fascinante e inspiradora.

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Pela conjugação de vários fatores, mais tarde interessou-me perceber o cruzamento entre a política e as representações jornalísticas, pressupondo que estas consubstanciam representações simbólicas socialmente influentes em efeitos de capacitação. E de facto, durante muitos anos, nas notícias seria assinalado o ângulo noticioso da “primeira vez” de mulheres em várias tutelas ministeriais, como nos Negócios Estrangeiros e nas Finanças (Teresa Patrício Gouveia e Manuela Ferreira Leite, respetivamente, em 2002).

Em 2022 ainda nos situamos no enquadramento jornalístico da “novidade histórica” no que diz respeito à participação política feminina. Nas notícias dos últimos dias foram valorizados dois enfoques temáticos. O primeiro, mais genérico, é a constituição, sem precedentes, de um governo paritário ao nível ministerial, com nove ministras, algumas das quais, como sucede com o ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, com peso político. A “número dois” do Executivo sai da “sombra de Costa” para se tornar a “superministra” e coordenar a execução do Plano de Recuperação e Resiliência.

O outro enfoque é mais específico. Pela primeira vez uma mulher será ministra da Defesa. Mais do que o nome, as notícias destacaram o sexo da titular. E daí surgiram títulos informativos de composição estranha como “fulano tal será ministro e Defesa terá uma mulher”... Afinal, a Defesa ainda era uma barreira à participação feminina. Helena Carreiras exibe um notável currículo académico e profissional nas áreas da Defesa e da Estratégia, além de ter conduzido investigação sobre, precisamente, a igualdade de género nas Forças Armadas, um tema sensível e que não poderia ser mais útil neste contexto.

A indicação de Helena Carreiras – e, mais globalmente, a formação de um governo paritário – invoca quase imediatamente a constituição do Governo paritário de José Luís Zapatero, em 2008, incluindo a nomeação de Carme Chacón, grávida de sete meses, para a pasta da Defesa. Na altura, escrevia a AP, “a designação inesperada de Carme Chacón, de 37 anos e sem qualquer experiência militar, é a mais corajosa afirmação do governo socialista, que fez da igualdade de género uma das suas prioridades principais”.

Bem sei que a perspetiva da paridade de género é desqualificada por muitas pessoas como sendo uma imposição artificial, desligada do critério do mérito e da competência da pessoa titular. Porém, se já não se pode argumentar com a falta de qualificação das mulheres para ocupar certos lugares, não indiciará a sua ausência nas hierarquias de poder um padrão estrutural de exclusão?

A resolução do défice de presença política feminina só ocorrerá por via de decisões políticas explícitas e assumidas, como a própria composição dos governos. Uma vez mais se salienta que, ao nível das perceções, se potenciam efeitos de capacitação, ou de falta dela.

Voltando um pouco ao início, na minha geração, e enquanto crescia, a minha atração pela figura de Maria de Lourdes Pintasilgo está relacionada, antes de mais, com a afirmação política, nas suas intervenções no espaço público e nas muitas entrevistas que dá a meios de comunicação nacionais e internacionais, de que as mulheres são tão capazes quanto os homens. Há 40 anos, a “surpresa” foi o convite dirigido a uma mulher para chefiar o Governo. Como se interroga Marcelo Rebelo de Sousa no prefácio de uma antologia de escritos de Lourdes Pintasilgo (Para um novo paradigma: Um mundo assente no cuidado, 2011, p. 17), em 1979 que sucesso poderia ter a primeira-ministra indigitada “num país político feito à medida dos homens?”

Em 2022, a expectativa é a de um Governo paritário, o que deverá ser celebrado como um passo em frente na concretização do ideal de representação democrática da sociedade e de capacitação de uma parte significativa dos seus membros. Esta representação é dinâmica e poderá sempre ser aprofundada, melhorada e alargada. Cada ponto de chegada é um novo ponto de partida. E é isso que mantém a democracia jovem.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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