Recebi uma “nude”: posso mostrar a imagem a amigos ou partilhar nas redes sociais? “Nunca”

Repartilhar uma fotografia (ou outro conteúdo) sem a autorização da pessoa retratada é crime. Não é por os conteúdos terem sido partilhados deliberadamente que é retirada a possibilidade de se apresentar queixa-crime perante uma ameaça de as tornar públicas.

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Thom Holmes/Unsplash

Enviaram-me uma “nude”: posso mostrar ou partilhar a imagem sem a autorização da pessoa que a enviou?

“Não, nunca”, começa por dizer Maria João Faustino, investigadora na área da violência sexual. “É a regra basilar: sem consentimento, nunca.

A pessoa que escolheu partilhar uma fotografia de cariz íntimo ou sexual decide enviar a imagem a uma determinada pessoa (ou várias) num determinado contexto. “O consentimento não é extensível e não pode ser delegado. É específico para cada acto e cada sujeito. Eu não posso decidir que o consentimento para eu ver a imagem é extensível ao meu melhor amigo”, explica a investigadora.

“Não é diferente de qualquer interacção sexual. É importante que as pessoas enquadrem isto dentro das dinâmicas de interacção sexual e da violência sexual. A partilha, divulgação ou manipulação de imagens de forma não consentida — ou a ameaça de o fazer — são formas de violência sexual.

Os meus amigos mostraram-me ou andam à procura em grupos online de uma fotografia que foi divulgada sem consentimento. Como lhes posso explicar que não devem partilhar?

“Não só podes explicar como há um dever de intervir. Sempre que te mostram imagens partilhadas de forma não consentida, há um dever de dizer: ‘Eu não quero ver e vocês não deviam estar a ver’”, alerta Maria João Faustino.

Numa entrevista sobre o tema, em 2020, o investigador Tiago Rolino explica que a sensibilização é frutífera quando “alguma voz se levanta dentro do grupo que partilha”. Um exemplo: um jovem rapaz que fala sobre o tema na mesma conversa no Telegram onde está a ser partilhado, sem consentimento da pessoa, o link com as imagens privadas. O investigador aconselhava a parar e responder a perguntas como: “Para que é que vou ver isto? Quais são as consequências? O que é que ganho em ver isto e até que ponto contribuo para o fenómeno se também vir isto ou se partilhar?”

“Participar, ainda que de forma mais passiva, é ser cúmplice”, conclui Maria João Faustino. “As pessoas que estão à procura de fotografias que foram partilhadas sem que as pessoas visadas tivessem consentimento não são meros curiosos — estão a participar num acto ilícito.”

Porque é que a investigação se afasta cada vez mais da designação “pornografia de vingança”?

A vingança não é a única motivação que leva alguém a partilhar uma fotografia, vídeo ou mensagem de texto ou som com cariz sexual ou íntimo que lhe foi enviada com expectativas de privacidade. Num crime onde os maiores perpetradores continuam a ser homens, o entretenimento ou um desejo de reforço da sua masculinidade também são apontados como razões.

Violência sexual baseada em imagens é o termo usado por quem investiga estas formas crescentes de violência, que muitas vezes se intersectam com outras, “nomeadamente com a violência doméstica e no namoro”. Depois, ao chamar pornografia, estamos a focar-nos mais no acto sexual ou na intimidade de cariz sexual que foi partilhada. Problema: o foco está mais na vítima do que no agressor.

A descrição também pode ter implicações em contexto legal e na forma como este fenómeno é conhecido socialmente. Leva a que queixas-crime e denúncias não avancem se a imagem não for “completamente explícita” ou usada para fins predominantemente sexuais.

Alguém partilhou uma imagem minha, com cariz íntimo ou sexual, sem autorização. O que posso fazer?

Este artigo de 2020, do PÚBLICO, explica o que alguém pode fazer perante uma ameaça de divulgação ou uma partilha ilícita. Pedro Duro, especialista em Direito Penal, salvaguarda que não é por as imagens ou conteúdos terem sido partilhados deliberadamente que isso retira a possibilidade de apresentar queixa-crime perante uma ameaça de as tornar públicas.

Pedro Freitas, professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, deixa um exemplo objectivo: num cenário em que “um casal de namorados troca fotos íntimas através de WhatsApp”, “há uma expectativa de privacidade” e, havendo uma divulgação, “entramos no crime do Artigo 192.º da devassa da vida privada”. A pena de prisão varia entre um mês e um ano, ou uma pena de multa até 240 dias. A divulgação através da Internet e das redes sociais pressupõe um agravamento de um terço na pena aplicada, elevando o máximo para um ano e quatro meses.

“Denunciar é fundamental”, diz Maria João Faustino. “Responsabilizar quem vê e quem partilha.” Existem “organizações que podem esclarecer dúvidas e prestar apoio” a quem pensa avançar com uma queixa-crime ou denúncia.

A Linha Internet Segura (800 21 90 90), da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), pode acelerar o processo de remoção de conteúdo partilhado online sem consentimento (mesmo que não seja possível garantir que as imagens desapareçam). A recém-criada associação Não Partilhes e a Associação de Mulheres contra a Violência também estão preparadas para prestar apoio.

Como posso enviar fotografias ou vídeos de cariz sexual de forma mais segura?

“A responsabilidade da violência sexual é sempre de quem a exerce”, salienta Maria João Faustino.

Embora seja importante ter consciência da pegada digital, e da falta de controlo que temos após enviar um conteúdo online, a investigadora é “muito crítica dos discursos de prevenção”. Em Janeiro, e depois do Ministério Público e associações registarem um aumento dos casos de cibercrime durante a pandemia, a GNR partilhou nas redes sociais uma imagem com a frase: “Pensavas que era só ele que ia ver?” Poucos dias depois, a publicação foi apagada, após muitos comentários alertarem que a mensagem apenas culpabilizava as vítimas.

Segundo Maria João Faustino, os deep fakes e outras formas de manipulação de imagens são uma prova de como estas formas de sensibilização, que deixam de fora quem perpetua o crime, “são ineficazes”. “Não há método nenhum que garanta que não vamos ser vítimas de um crime desta natureza. A manipulação de imagens é o exemplo mais flagrante: podemos ter todos os cuidados, podemos até nunca ter enviado nada e, mesmo assim, a violência existe.”

Nos casos em que alguém escolhe começar uma conversa online de cariz mais íntimo ou sexual com outra ou outras pessoa, é “importante garantir que está toda a gente ‘a bordo’, que as pessoas estão igualmente investidas”. “As imagens têm de ser partilhadas com consentimento de todas as partes. É a mesma regra de qualquer outra interacção sexual”, repete.

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