O demónio da aliança

Podem perguntar-me porque é que não pedi o divórcio. A resposta é simples, aquilo tornou-se um vício. Gostava de o fazer às escondidas, com várias pessoas. Não que gostasse de trair o meu marido, nunca gostei, a questão não era essa. Mas se eu fosse divorciada, a coisa ia perder a adrenalina.

Foto
Mel/Unsplash

É preciso ter uma certa idade e alguma experiência. Começa-se por tentar fazer sexo. Atenção: tentar. Não quer dizer que se consiga. As primeiras experiências bem-sucedidas acontecem normalmente na solidão do quarto. No início, as tentativas a dois não correm bem. É raro correrem bem. Leva-se muito tempo até se conseguir ser aquilo que eu sou. Dantes tinha vergonha, mas agora já não. Sou uma fornicadora. Ou fui, agora já não sei. A palavra pode estar em desuso, lamento, mas não há nenhuma outra que me sirva tão bem. Sou uma fornicadora, repito.

A primeira vez que me chamaram “fornicadora” senti-me ofendida. A ideia era ofender-me, claro, porque além de fornicadora chamaram-me porca, nojenta, monte de merda, tudo sinónimos – a pessoa que me ofendeu não tinha muita imaginação ou estava demasiado irritada, não sei. Casei-me nova demais, tinha dezoito anos e fui arrastada para a igreja porque o meu namorado da altura queria muito que casássemos. Confesso, tinha um pressentimento de que aquilo não ia correr bem. O que eu não sabia é que o casamento ia despertar em mim um pequeno demónio, a tal coisa a que na Bíblia chamam “luxúria”.

Mal pus a aliança do dedo comecei a olhar para outros homens na sala; JURO que até à data nunca o tinha feito, pelo menos nunca em frente ao meu namorado que, entretanto, tinha mudado o título para meu esposo. Ter um esposo é uma coisa que não dá ponta nenhuma. Desde miúda que quando oiço esta palavra me lembro sempre da palavra “esponja"; eu sei que é infantil, mas não consigo evitar. “Esposa” é igual a “esponja”, e vem-me à cabeça o objecto para limpar a loiça, que é tudo menos atraente. Por isso recusei-me a tratá-lo assim, o José continuou a ser o José ou o meu marido.

Posso afirmar com toda a certeza que a minha luxúria começou no dia do meu casamento. Ainda no copo d'água senti vontade de fornicar com uma grande parte dos homens que estavam na sala, bem vestidos e perfumados, excepto os tios e os avôs e os miúdos, de resto tinha encostado na boa qualquer um dos tipos à parede da casa de banho. Não tive coragem, apesar de um dos amigos do meu marido ter passado a festa inteira a fazer-me olhinhos. A minha vontade de fornicadora naquela altura era ainda uma migalha daquilo que viria a ser um grande pão alentejano de traições. Digo pão alentejano porque sou de Serpa, não sei se já tinham percebido pelo sotaque.

Os meus avós e os meus pais são de Serpa, vivi na terra até vir estudar para Viseu e por cá fiquei. Foi aqui que conheci o meu marido. Acreditem que nunca lhe quis faltar ao respeito, mas o demónio da aliança fez de mim uma outra mulher. Comecei a marcar encontros com homens através de aplicações online. Primeiro só muito de vez em quando, sei lá, uma vez de três em três meses, até que, sem saber como, passou a ser todas as semanas. No início eram só homens, mas depois também comecei a fornicar com mulheres e em grupo. Só havia uma regra: nunca repetir com a mesma pessoa. Tinham de ser sempre diferentes. Tinha ideia de que se repetisse podia ser descoberta.

Podem perguntar-me porque é que não pedi o divórcio. A resposta é simples, aquilo tornou-se um vício. Gostava de o fazer às escondidas, com várias pessoas. Não que gostasse de trair o meu marido, nunca gostei, a questão não era essa. Mas se eu fosse divorciada, a coisa ia perder a adrenalina. O medo de ser descoberta e acabar com a minha “vida normal” era aquilo que me alimentava a luxúria. Nunca me iludi, aquilo era só carne contra carne, saliva com saliva, nunca quis deixar o meu marido, gostava de estar com ele, amava-o e a nossa vida sexual também era boa. Por isso acreditem que a pessoa traída fui eu.

Nunca esperei que a vida desse uma cambalhota daquelas. Quando o José me disse que queria ir para um seminário, eu achei que devia ser uma brincadeira. É certo que sempre foi um homem religioso, fez a catequese, o crisma, ajudou o padre na missa, e para ele teria sido impensável não casarmos pela Igreja mas, ainda assim, aquela confissão foi mesmo surpreendente. “Queres ser padre?” A pergunta à qual obtive uma resposta afirmativa ainda hoje me deixa incrédula. Também lhe perguntei o que ia ser da nossa vida. O José começou a chorar e pediu-me perdão. Que não queria fazer-me mal, que me amava mas que tinha sentido o chamamento de Deus e nada podia fazer contra uma espécie de imposição divina. Separámo-nos.

Desde que me divorciei perdi o interesse no sexo. Masturbo-me pontualmente, e pronto. Uma vez por mês vou assistir à missa dada pelo José, que foi colocado numa aldeia um bocadinho acima do Porto. Voltei a morar em Serpa, vim para junto da família. Sempre que me perguntam quando é que volto a casar, penso em orgias e em sexo com pessoas aleatórias. Não passa de um pensamento veloz na minha cabeça. O casamento traz-me à memória a fase de fornicadora. Mas logo perco o interesse. Estou bem assim agora. Gosto de ser uma mulher divorciada. No entanto, tenho de dizer que descobri nos últimos tempos um prazer inédito. Só contei ao José e foi no confessionário; eu que nunca fui crente, saí de lá aliviada. Mandou-me para casa com uma lista de orações que não cumpri, claro, mas com a bênção de ter ouvido da boca do José: “Estás perdoada.”

Sugerir correcção
Ler 2 comentários