O PRR serve para perpetuar a inequidade no acesso à cultura?

Três instituições de Lisboa que, somadas, não chegaram a 70 mil visitantes em 2019 vão receber uma verba superior à que o PRR atribui a toda a região Norte.

A distribuição territorial de verbas inseridas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) da Cultura refletem um desequilíbrio brutal das mesmas em favor da capital do país. Isto decorre em parte de uma inércia jacobina: o pensamento de que o núcleo do património cultural português só pode estar domiciliado em Lisboa. Na linha do adágio popular de que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.

Entendem-se certos apoios. O Mosteiro dos Jerónimos estando em Belém é um símbolo de Portugal. Da mesma forma que o são o Castelo de Guimarães, o Mosteiro de Santa Clara em Coimbra ou o Convento de Cristo em Tomar. O Teatro de São Carlos é nacional. Como Teatro de São João, no Porto, diga-se. Mas custa a engolir que a museus que não passam dos 35 mil visitantes por ano (quando o Museu Berardo e Serralves ultrapassaram o milhão de visitantes) se atribuam verbas que vão de 2,2 a 6,2 milhões de euros. Dito de outra forma, três instituições de Lisboa que, somadas, não chegaram a 70 mil visitantes em 2019 vão receber uma verba superior à que foi atribuída a toda a região Norte.

PÚBLICO -
Aumentar

Convém, claro, recordar que dos 153 milhões distribuídos na área da Cultura, no âmbito do PRR, 114,2 milhões ficam em Lisboa, 19,7 milhões vão para a região Centro, 9,8 milhões seguem para o Norte sobrado para o Alentejo 3 milhões e para o Algarve 1,2 milhões.

Quando pensamos nas instituições e equipamentos culturais que existem em Braga, Guimarães, Vila do Conde, Viseu, Bragança ou Chaves, para citar apenas algumas e desde logo excluindo o Porto, não se alcança o racional deste investimento. Desde logo porque no decreto de lei que regula a distribuição de verbas do PRR se afirma que este plano se destina a reforçar a coesão territorial. Assim esta postura de quem decide é inaceitável e choca, desde logo, com os critérios que regulam a criação e a difusão cultural.

O apoio à pluralidade cultural de Portugal é um tema que a todos interessa e a justiça distributiva não existe através de atitudes discriminatórias que, errada ou mesmo de forma perversa, não consideram que a cultura deve chegar a todo o país. Não podemos aceitar uma política de centralismo cultural que remete para o centralismo democrático de Lenine. Temos liberdade para criticar e discutir as políticas culturais, mas as decisões são tomadas ao arrepio do interesse nacional, antes servindo para satisfazer algumas clientelas.

Todos estarão de acordo na necessidade de equidade no acesso aos cuidados de saúde. Mas cultura também é uma dimensão basilar da condição humana, pelo que não podemos limitar o seu acesso apenas a alguns. E sendo óbvio que não vamos criar teatros nacionais em cada distrito, não faz sentido desperdiçar milhões em museus da capital que quase ninguém visita. Enquanto isto continuar a acontecer, perpetuando iniquidades e ineficiência de forma despudorada e ante o silêncio cúmplice de todos, a descentralização continuará a ser um belo ideal. Apenas isso e nada mais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários