“Descobrindo” o Manual Colonial

Um olhar sobre alguns dos atuais manuais de história do 5.º ao 12.º ano – exercício que faço anualmente com as e os estudantes – faz pensar o muito que há por fazer.

O recém-aprovado Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação tem como uma das suas medidas a alteração dos manuais escolares. As críticas ao eurocentrismo e ao racismo estrutural nos manuais de história, embora escassas, não são novas: temo-las em pesquisas (Marta Araújo e Sílvia Maeso, 2016), em recomendações nacionais (Conselho Nacional de Educação, 2020) e internacionais (ECRI, 2016 e 2018 e ONU/Afrodescendentes, 2021), assim como nas reivindicações públicas do movimento negro (como a Carta de coletivos afrodescendentes e antirracistas à CERD/ONU, 2016). Os casos de racismo que têm marcado a atualidade, assim como a resistência das autoridades em reconhecê-los como tal, evidenciam a urgência de uma pedagogia antirracista. Um olhar sobre alguns dos atuais manuais de história do 5.º ao 12.º ano – exercício que faço anualmente com as e os estudantes – faz pensar o muito que há por fazer.

A África do séc. XV a XIX surge, geralmente, sem qualquer delimitação e discussão das suas soberanias políticas, como os impérios do Mali, Benim, Wolof ou o Reino do Congo. A excepção é a remota civilização egípcia, descrita enquanto antecâmara da civilização grega, mais do que nas suas relações políticas em África. Do continente saem, para outras latitudes, linhas que representam “rotas comerciais” e que fazem equivaler ouro, malagueta e marfim, portanto mercadorias, a vidas humanas – chegando-se mesmo a perguntar: “que produtos eram trazidos de África?” (HGP em Ação 5). Contar é também, muitas vezes, glorificar um passado de violência e saque – designado como “descobrimentos”, com D maiúsculo. Há quem convide os estudantes a encontrar na Internet os padrões de pedra portugueses ainda existentes por esse mundo (Missão: História, 8.º ano), talvez mais para reatualizar a grandeza do império, do que para reflectir sobre como reparar hoje os povos desses territórios.

Mas se a África de então nos é retratada como uma mina de riquezas, a África pós-colonial surge como o “continente de todos os males” (Um novo tempo de História, 12.º). Discorre-se sobre insuficiência alimentar e sanitária, caos político e crise humanitária, problematizando-se pouco o que é o neocolonialismo. Exibem-se fotografias de crianças do sul global com legendas como “fome e miséria” ou “terceiro mundo” (Viva a História!, 9.º ano). Este discurso transmite a ideia de que os africanos são incapazes de se autogovernar e que, não fosse o apoio humanitário da Europa, ainda estariam pior.

É raro referir-se que Portugal foi o principal (e não um dos principais) traficante de escravizados no Atlântico. Já a figura do Padre António Vieira (PAV) está hipervisibilizada, como que para mostrar que, apesar de tudo, tínhamos por cá quem criticasse a escravatura. Ao invés de “endeusá-lo”, seria importante olhar criticamente para a crítica do PAV e levar os estudantes a reflectir sobre as contradições do “humanismo”. É que ser contra os “excessos” de violência não significa, necessariamente, ser por princípio contra a violência, reconhecer humanidade ou o direito à igualdade e à resistência.

A (suposta) vocação “antirracista” do país reaparece no tema da abolição. Quando não mesmo enquadrada no mito do pioneirismo português, esta tende a ser vista como resultado exclusivo de vontades ocidentais (entre outros, Um Novo Tempo da História, 11.º A). Como ignorar a Revolução do Haiti? Como ocultar exemplos da resistência negra à escravatura, como o Quilombo dos Palmares, a Revolta dos Angolares e a Rainha Nzinga, apresentada mais como convertida ao cristianismo e “vassala” de Portugal, do que enquanto estratega militar e política na resistência ao domínio português? Um dos manuais até apresenta um excerto do livro A minha Verdadeira História, da autoria de Olaudah Equiano (1789), célebre abolicionista negro. Mas aquilo que parecia ser uma boa iniciativa é rematado com a seguinte pergunta: “Parece-te que o depoimento deste jovem [Olaudah Equiano] merece confiança? Porquê?” (História 8).

Quando diretamente abordado, o racismo surge como apanágio do nazismo, os restantes fascismos europeus (entre os quais o português) teriam outros problemas, mas não esse (veja-se tabela proposta em O Fio da História, 9º ano). Esta visão reduz o racismo aos casos extremos – um programa estatal explícito de genocídio étnico – e dissocia-o do colonialismo. Perde-se, assim, a oportunidade de abordar o racismo como um dos pilares do Estado Novo – materializado no Estatuto do Indigenato e no Lusotropicalismo – e mesmo da I República.

Há ainda exemplos em que o eurocentrismo e o racismo têm uma visibilidade aterradora. É o caso da legenda “Representação de um cafre” utilizada na reprodução de uma pintura do séc. XVI onde figura um homem negro (Um Novo Tempo da História – 10 º ano). Numa ilustração, que tem no fundo as caravelas estacionadas numa praia tropical, onde invasores e povos nativos virão a ter o dito contacto intercultural – que sabemos como acabou –, coloca-se à frente uma criança ameríndia que sorri dizendo ao leitor: “Hoje foi um dia de festa na minha aldeia” (HGP em Ação do 5.º ano). Continuam a utilizar-se fotografias actuais de povos do Quénia e do deserto do Calahari para ilustrar as primeiras civilizações da humanidade, categorizando-os assim como primitivos contemporâneos (Viva a História – 7.º ano). O mesmo acontece quando se diz “ainda existem comunidades de índios no Brasil, hoje em dia” (HGP em Ação 5). Outro exemplo problemático é uma infografia com o número de mortos da “guerra colonial”, mas em que afinal apenas se contabilizam os mortos do exército português (O Fio da História, 9.º ano). Essa forma de narrar está, aliás, em linha com a narrativa dominante de “des-africanização” do 25 de Abril e de apresentação das independências como algo que foi “dado” pelos portugueses.

Em nenhum manual de história há uma linha que seja sobre a história das comunidades ciganas portuguesas e do anticiganismo em Portugal, assim como não há sobre a presença negra, que remonta pelo menos ao séc. XV. Este é um vazio fértil para o esteriótipo, para o branqueamento das origens (multiraciais, não só caucasianas) e para o acicatar de velhos ódios.

Irá agora, com o Plano Nacional de Combate ao Racismo e Discriminação, o Ministério da Educação (ME) mostrar-se mais proactivo nesta matéria? Até ao momento, os argumentos têm sido que o mercado dos manuais é livre, que os manuais já não são o “guião” das aulas, que esses “temas” podem ser abordados na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e no tempo lectivo facultado pela flexibilidade curricular. E as editoras? Sendo este um negócio lucrativo e competitivo, terão interesse num manual descolonizado num país por descolonizar, que terá, provavelmente, pouca “procura” e “custos” de confronto político? Dirão também, talvez, que é a própria grelha curricular que os impossibilita de tais abordagens. Sem voltar, obviamente, ao “livro único”, urge encontrar formas de repensar as perspetivas abordadas (sobre racismo/colonialismo e outras relações de poder) e fazê-lo de forma participada. Abre-se agora um espaço, vejamos o que se fará com ele.

*Agradeço às e aos estudantes da licenciatura de Educação Básica da ESE-IPS, cuja generosidade e olhar crítico na análise de manuais escolares, muito contribuiu para este texto.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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