O que fazer com a disfuncionalidade do mercado de arrendamento português?

Neste momento de crise de habitação, é imperativo categórico que o Estado torne a reabilitação urbana e o mercado de arrendamento acessível um setor atrativo para as dinâmicas imobiliárias.

O mercado de arrendamento português é profundamente disfuncional há várias décadas. Em todas as reformas realizadas, não foi possível descongelar permanentemente as rendas antigas, desenvolver mecanismos de apoio às famílias que não conseguem pagar as suas rendas e criar um clima de confiança que atraia investimentos e aumente a oferta de locados para arrendar no setor privado. Não se conseguiu resolver o problema estrutural de desajustamento constante entre oferta e procura de arrendamento no mercado nacional português. As autoridades públicas, com um pequeno parque habitacional público, também descapitalizado e incapaz de fazer do mercado de arrendamento uma prioridade na política nacional de habitação, delegam a responsabilidade pela criação de um mercado de arrendamento a preços acessíveis para o sector da propriedade privada.

Os resultados, apesar de algumas melhorias pontuais na última década, são bem visíveis: Uma degradação acentuada do parque habitacional, resultante da descapitalização dos seus proprietários; um número crescente de casas vazias em Portugal, embora os devolutos na cidade de Lisboa tenham diminuído desde 2011, ainda que existam mais de 48 mil casas vazias; uma redução progressiva na oferta de casas para arrendar, escassas e com valores de arrendamento inacessíveis à maioria das famílias, se considerarmos os novos contratos no mercado livre.

Uma questão impõe-se: o que fazer? Que medidas políticas tomar no sentido de reverter esta situação? Neste momento de crise de habitação que se tem agravado ao longo dos últimos anos, é imperativo categórico que o Estado torne a reabilitação urbana e o mercado de arrendamento acessível um setor atrativo para as dinâmicas imobiliárias, atraindo o maior número de fogos privados possível, através de isenções fiscais mais drásticas e estímulos ao nível da política fiscal para o setor privado e particulares onde se concentra a esmagadora maioria do parque habitacional devoluto. Neste âmbito, pode até prever-se medidas de subsidiação ao arrendamento (diretamente ao proprietário) em casos específicos de acolhimento de famílias / indivíduos vulneráveis ou de emergência habitacional (exemplo do Programa da Renda Segura da Câmara Municipal Lisboa). Veja-se que a quebra, desde o início da pandemia, de cerca de 7% dos fogos afetos a unidades de alojamento local e a migração de muitos destes para o sector do arrendamento, conciliada com outros fatores, contribuíram para um abaixamento do valor das rendas na cidade de Lisboa em cerca de 15% nos meses seguintes.

Por outro lado, em áreas de forte pressão urbana, onde a percentagem de devolutos persista em manter-se muito elevada, é obrigação do Estado fazer cumprir a recente promulgada Lei de Bases da Habitação, promovendo o cumprimento da função social da propriedade. Assim, recomenda-se que se ativem medidas mais coercivas e drásticas que elevem o IMI aos devolutos de forma tal que não seja benéfico para os proprietários não lhe dar um uso social ou económico. Em caso de abandono motivado por heranças indivisas, cadastro inexistente ou dono desconhecido, ou total desinteresse pelo proprietário, sugere-se a tomada de posse administrativa do fogo/edifício ou mesmo expropriação por parte do Estado, como acontece noutros países e cidades europeias em que o mercado de habitação se encontra sobreaquecido e não ajustado à procura, tais como Berlim ou Viena.

É necessária uma nova lei do arrendamento que permita a criação de um ambiente de confiança no mercado de arrendamento, contrário ao desenvolvido nos últimos 60 anos, com garantias efetivas de proteção aos senhorios e inquilinos, no caso do incumprimento dos contratos, mas também direitos e deveres para ambas as partes (senhorios e inquilinos) e que não permita, em nenhuma circunstância, processos de despejo dos inquilinos em que não estejam devidamente asseguradas alternativas dignas ou meios de subsistência suficientes, devendo forçosamente analisar-se a situação familiar e encontrar-se os meios adequados para o apoio às famílias em caso de incapacidade financeira para manter a habitação.

O Estado Central tem de assumir as responsabilidades que lhe são incumbidas pela Constituição da República Portuguesa e pela Lei de Bases da Habitação, como regulador, executor, construtor, promotor e provisor direto de habitação pública e de acesso à habitação, ao contrário do papel de gestor ou de mero garantidor, facilitador do mercado privado, papel que tem assumido com maior peso nos últimos anos em que vivemos uma verdadeira viragem neoliberal nas políticas urbanas e de reabilitação. É indubitável que ao Estado incumbe intervir em todos os níveis da definição e planeamento da utilização de solo urbano, no controlo de preços e mais-valias, ser simultaneamente promotor e proprietário de habitação, contribuir na reabilitação do edificado e na oferta de habitação e arrendamento acessível. Não quer isto dizer que para garantir o direito à habitação [em Lisboa], o Estado, representado a nível local pela Câmara Municipal de Lisboa deva ser, maioritariamente, Proprietário, Gestor ou Regulador do parque habitacional da cidade.

Isto significa que o Estado se deve comprometer com uma coordenação eficaz de políticas de arrendamento que medeie os mais diversos e contraditórios interesses, stakeholders e organizações envolvidas no setor; exigir e permitir que todas as partes interessadas relevantes nos setores público e privado desempenhem um papel na realização de metas de habitação acessível e inclusiva; estabelecer e monitorar padrões para arrendamento adequado e acessível em todas as formas. O que significa é que deve esforçar-se por fazerem coexistir de forma equilibrada são os três modelos de regime de propriedade previstos na Constituição da República Portuguesa e cuja lógica se deve estender também ao arrendamento: o do setor privado (portanto mercado livre), o do setor público e o do setor cooperativo e social.

Portanto, é importante entender como o problema público relacionado ao arrendamento acessível é percebido pelo ambiente político e confrontá-lo com outras experiências e com evidências empíricas. A ação governamental é decisiva e molda a política habitacional e as formas e regimes de ocupação, afetando também o mercado privado de arrendamento, por exemplo, por meio da regulação das instituições e do mercado financeiro, mas também por meio de isenções fiscais para os proprietários que colocam as suas casas no mercado de arrendamento, criando um quadro jurídico e marco regulatório que transmita credibilidade, estabilidade e segurança às formas contratuais entre oferta e procura, e um efetivo direito à habitação por via do arrendamento acessível, reconhecendo este tanta pela sua função económica quanto social.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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