Cada vez mais empresas viram as costas à Rússia

Saída de multinacionais do petróleo inaugurou movimento que engrossa a cada dia, com novos bloqueios de tecnológicas, consultoras, automóveis e serviços.

Foto
A Adidas foi um dos patrocinadores de grandes competições de futebol na Rússia e é uma das multinacionais que optou pelo boicote Reuters/MAXIM ZMEYEV

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.


À medida que as tropas russas tentam avançar pela Ucrânia dentro, um número cada vez maior de empresas ocidentais anuncia que quer cortar laços com a Rússia. Sem capacidade de evitar a fuga de multinacionais, o Kremlin tenta responder por via legal, através de restrições à venda de participações. Uma reacção que, dada a importância do petróleo e do gás, pretende travar a saída de grupos como a BP e a Shell e desincentivar que outros sigam o exemplo.

Numa questão de semanas, o negócio lucrativo da energia face à escalada de preços dos produtos petrolíferos e do gás natural tornou-se numa das ameaças para o terceiro maior produtor do mundo. O petróleo constitui 47% das exportações russas e o gás natural 6%.​ Qualquer instabilidade no fluxo de receitas terá repercussões no financiamento da economia e do esforço de guerra a que o Kremlin submeteu o país.

Receando que cada vez mais empresas decidam desinvestir, o primeiro-ministro russo Mikhail Mishutin anunciou que Moscovo prepara um decreto presidencial para introduzir “restrições temporárias à saída [de investimentos estrangeiros] dos activos russos”. Porém, uma coisa é travar a venda de participações financeiras, outra é garantir que a economia continue a funcionar.

Para algumas empresas, a decisão de sair porá fim a um longo ciclo de investimentos lucrativos. Grandes multinacionais energéticas apostaram em força na Rússia desde a década de 1990, conforme sublinhavam analistas da Bloomberg, ao ponto de algumas delas serem hoje em dia dos maiores investidores estrangeiros. A BP tornou-se mesmo o maior e, nessa condição, surpreendeu Moscovo no domingo com o anúncio de que pretende desfazer-se dos 19,75% que detém na Rosneft, um desinvestimento que poderá levar a britânica a inscrever perdas de 22,2 mil milhões de euros nas suas contas.

A produção da Rosneft (controlada pelo Estado russo) representa um terço da produção petrolífera e de gás da BP. Três das explorações da Rosneft previam atingir picos de produção entre 2022 e 2025. Mesmo assim, os britânicos decidiram sair, inaugurando um movimento que, desde então, tem vindo a engrossar.

Seguiu-se a Shell, com interesses de 3000 milhões de euros na Rússia, e que anunciou na segunda-feira que quer desfazer-se das participações em projectos conjuntos com o grupo Gazprom, no gás natural (Sakhaline-2) e no gasoduto Nord Stream 2.

“Há um imperativo moral de as empresas britânicas isolarem a Rússia. Esta invasão tem de ser um falhanço estratégico para Putin”, reagiu Kwasi Kwarteng, titular da pasta da Economia no Governo britânico. Do outro lado do canal da Mancha, o seu homólogo francês também lançou palavras de incentivo a uma “guerra económica e financeira contra a Rússia”, embora depois tenha feito marcha-atrás.

Na mesma altura em que a francesa Total Energies anunciava um travão nos investimentos na Rússia, o ministro da Economia e das Finanças, Bruno Le Maire, disse numa rádio que o objectivo ocidental era “afundar a economia russa”. Horas depois, arrependeu-se. “A palavra guerra não é a mais apropriada face à nossa estratégia de desanuviar as tensões deste conflito. Nada temos contra o povo russo”, corrigiu.

A Total Energies não foi tão longe quanto a BP e a Shell. Envolvida em projectos de gás natural, controlando 19,4% na Novatek, o maior produtor russo de gás natural liquefeito. A companhia francesa mantém para já esta participação, mas “deixa de providenciar capital para novos projectos na Rússia”.

Le Maire tinha avançado que estava em conversações com as cúpulas da Total e da Engie, esta última ligada ao Nord Stream 2. Trabalhar com a Rússia levanta, neste momento, “questões de princípio”, realçou o governante.

Nord Stream 2 à beira da insolvência

A Nord Stream 2, por seu lado, estará à beira da insolvência, de acordo com a Reuters. Os 140 trabalhadores desta sociedade com sede na Suíça foram despedidos e, sem a certificação do gasoduto, que a Alemanha agora recusa devido à invasão russa da Ucrânia, e enfrentando as sanções de Washington e Bruxelas, a Nord Stream 2 AG estará a ponderar a declaração de insolvência. O gasoduto com 1230 km de extensão custou 11 mil milhões de dólares (9,8 mil milhões de euros ao câmbio actual). A Gazprom assumiu metade da factura, contando com Shell, Engie, OMV, Wintershall e Uniper como parceiros, no projecto que deveria duplicar a capacidade de fornecimento de gás russo à Alemanha.

Um analista citado pela Reuters mostrou-se surpreendido por a Total não ter ido mais longe. Outro, citado pela Bloomberg estimou, contudo, que outras petrolíferas com interesses na região, como a Exxon Mobil, possam nas próximas horas engrossar o pelotão de multinacionais que fecham a porta à Rússia.

Porém, mesmo sem vender participações, muitos outros anunciaram nas últimas horas que fecham a porta à Rússia. No plano empresarial, a Adidas pôs fim ao patrocínio do futebol russo (os mercados do leste representam 2,9% da facturação da marca em 2020), e tecnológicas como YouTube, Netflix e Meta acompanham a Warner Bros. no lote de multinacionais que prescindem por agora do mercado russo. Decisões que reforçam ainda mais o isolamento, depois das sanções em catadupa que têm vindo a ser conhecidas no plano desportivo e no sector cultural, afectando até as exportações deste último.

Na indústria automóvel, a Volvo e a Volkswagen anunciaram suspensão de entregas na Rússia. A marca sueca justifica a decisão com riscos comerciais. Os fabricantes de pesados AB Volvo e Daimler Truck também congelaram as vendas no país, com a Daimler a travar também a parceria que tinha com a Kamaz.

Também a General Motors confirmou a interrupção do envio de viaturas, aludindo a “factores externos” como os problemas logísticos. Os líderes mundiais do transporte de contentores por mar, MSC e Maersk, reduziram o transporte de carga aos bens essenciais.

No mundo da advocacia e das grandes consultoras, a britânica Linklaters garantiu que está a rever todo o trabalho relacionado com a Rússia e a KPMG prometeu cortar laços com todos os clientes que estejam na mira das sanções ocidentais contra os interesses russos. Outras, como a McKinsey, deixaram cair clientes que pertençam à administração russa, mas segundo se depreende das palavras do CEO, Bob Sternfels, a consultora mantém a restante operação na Rússia.

A Mastercard e a Visa bloquearam entretanto algumas operações no mercado russo, para respeitar as sanções e outras empresas ocidentais com importantes investimentos na Rússia, como a Danone, a Carlsberg e a Renault, e outras asiáticas como a Mitsubishi, estão a avaliar o impacto da guerra nas suas fábricas naquele país.