Sondagens, palhaços, e kung-fu

Nada tenho contra circo e inutilidades em geral, mas o próprio Heisenberg lembraria que o observador influencia o objecto e perturba-me que as sondagens interfiram no processo democrático,

Se o objectivo das sondagens era antever os resultados das legislativas então só podemos concluir que foram mais um fracasso numa longa tradição de fracassos. Nada de grave, pois esses artefactos místicos servem sobretudo para dar a vida a ganhar aos próprios sondadores e à legião de seus primos comentadores, opinadores e tudólogos, que afinal de contas também são gente. Gratos e agradecidos, trataram de especular primeiro sobre os porquês do eleitorado não se decidir e depois sobre os porquês das sondagens não sondarem.

Nada tenho contra circo e inutilidades em geral, mas o próprio Heisenberg lembraria que o observador influencia o objecto e perturba-me que as sondagens interfiram no processo democrático, elevando-se ao patamar das campanhas, debates e programas eleitorais, sem que tal usurpação faça tocar os sinos a rebate.

É fácil de imaginar sondagens-a-feitio divulgadas nos momentos certos, procurando conduzir o eleitorado ao redil dos players (“brincalhões”, em bom português), o que é um cenário bem menos rebuscado do que o do caso da Cambridge Analytica antes da fantasia ter virado facto. Mesmo que o risco seja pequeno, até porque em política toda a gente é séria, corremo-lo a troco de quê?

A troco de nada, absolutamente nada. As sondagens só servem para alimentar o frenesim mediático, sempre alérgico à substância e ávido da banalidade. É como se enfiássemos um besouro nas calças, porque, mau grado as mordidelas, a comichão até é agradável.

Portanto, seria extremamente sensato proibir — pro-i-bir — a divulgação pública de sondagens durante as duas semanas da campanha eleitoral. Os partidos poderiam encomendá-las (e pagá-las), interpretar os padrões no voos dos pássaros, ler folhinhas de chá, etc, desde que o fizessem em privado.

Il faut palhaços

Como foi aludido acima, esta limitação da liberdade d’el-rei Mercado prejudica os profissionais da Comunicação Social & Entretenimento, que afinal de contas também são gente, e já tão flagelada com o tenebroso dia de reflexão. Há páginas a encher, minutos a queimar, e há que dar ao povo o que o povo quer. E o povo não quer saber de clima, quer saber do tempo, não quer saber de política, prefere politiquice, e certamente que não quer saber de arte ou cultura em dia de futebol.

É então em nome do povo que se cultiva a verborreia, a controvérsia, e o baralha-e-volta-a-dar. É imperativo encher, não dar tempo ao espectador-consumidor para matutar e maturar, descansar os olhos na paisagem, espraiando o olhar e o pensamento até se perder no infinito, surpreender-se fascinado pelo milagre da Vida, essa amotinação no caos que dele nasce e a ele sucumbe de dedo médio bem esticado, até que, estremecendo de alto a baixo, o espectador-consumidor percebe que o Infinito também o olha, também o fita, e lhe sussurra; a profecia é afinal verdadeira, também ele sucumbirá ao caos, e as areias do tempo nunca afrouxam o passo, passando o tempo por entre passares-de-tempo.

Abram-se as comportas do questionamento crítico e apóstata — “Esta coisa valerá o tempo que vou ter de trabalhar para ela?”, “Abdiquei de cinco minutos do meu tempo para ler esta crónica e que levo eu em troca?”, etc — e eis que o povo deixa de ser massa amorfa e informe para ganhar voz, memória e consciência, inutilizando-se assim as máquinas da mentira e da manipulação que o dirigem como retroescavadoras a uma torrente de lama.

É preciso que haja palhaços, portanto, e por isso remeto para o visionário telejornal da RTP nos anos 90, que tantas vezes acabava com cenas da viril democracia da Ilha Formosa, hoje mais conhecida por Taiwan. “Tu sacrificas as pessoas no altar do mercado”, dizia um tribuno. “E tu ganhas a vida cavalgando os subsidio-dependentes”, respondia outro em alto e bom mandarim, e prosseguia o debate, e vai-que-não-vai já se subiam bancadas, pregavam-se rasteiras, arremessava-se mobília, até se compor uma típica cena de saloon num western spaghetti.

Será necessário actualizar este conceito para o século XXI porque o espectáculo deixava a desejar. Tratando-se de chineses, esperava-se golpes-do-tigre-cansado e até um ayuken ou dois, mas não, mais pareciam meninas de 8 anos a discordar quanto aos benefícios da amizade Barbie-Ken. Mas vale a dica conquanto não se recupere a famigerada piscadela do José Rodrigo dos Santos no fecho do telejornal, que era de fazer arrepiar as estátuas.

Foto
Parlamento de Taiwan DR

Opinião de Última Hora

Por falar em irrelevâncias, a Selecção Portuguesa de Futsal sagrou-se campeã da Europa, batendo a Rússia na final, e está naturalmente de parabéns. Infelizmente, Portugal continua a desperdiçar os seus melhores talentos, e passo a explicar porquê.

Temos ali “30 guerreiros que tocaram o céu”, nas palavras do intrépido capitão João Matos, e ainda por cima habituados a cascar nos russos, e o nosso Ministério da Defesa não os destaca imediatamente para a base da NATO mais próxima?! Sabendo que Putin só está à espera do horário de Verão para invadir a Ucrânia?!

Vladimir Putin soube ver o perigo daqueles 30 pontapeadores de bola, amantizados com as valquírias e dispostos a irromper Valhala adentro com reviengas e muito entrosamento, quais 300 espartanos estancando toda a Ásia nas Termópilas! O nervosismo do homem-forte russo ficou patente com o ciberataque à Vodafone, agressão cruel que deixou milhões de portugueses horas a fio sem Youtube nem Tik tok. Não merecíamos, Putin, nós que tantas vezes te oferecemos os dados dos teus opositores numa bandeja.

Talvez esta lassidão do Governo seja afinal solidariedade para com a Comunicação Social & Entretenimento, que ainda sonha com os tempos (outra vez os anos 90) em que transmitia à hora do jantar o esplendoroso fogo-de-artifício nos céus de Bagdade, filmado a partir das varandas do hotel spa designado para o efeito e com mestres de cerimónia vestidos de camuflado a rigor, tudo para que os portugueses pudessem desfrutar do espectáculo dos horrores da guerra alheia na tranquilidade dos seus lares.

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