A comunicação da política espectáculo

Neste tempo da política espectáculo, é o poder que se joga nas urnas e não tanto a ideia.

Nos anos 70, o então ainda jovem político francês da esquerda radical, Roger-Gérard Schwartzenberg, exortava ao derrube urgente daquilo que já considerava ser o “estado espectáculo” da política, assente na personalização do poder, na lógica de one-man show e num star-system, que o autor considerava estar a matar a democracia. Uma política feita à medida dos media, na qual o político assume o papel de vedeta e o cidadão se torna um simples espectador. Como escreveu o também sociólogo e ex-ministro na sua importante, mas pouco citada obra, O Estado Espectáculo (Rio de Janeiro: Difel, 1978 [ed.orig. L’État Spectacle, Flammarion, 1977]), trata-se de um “poder sempre em representação”, perante o qual o eleitorado “é apenas testemunha passiva e manipulada dessa exibição permanente”. Este diagnóstico tem mais de quarenta anos, mas na sua essência mantém-se actual. No entanto, importa ressalvar uma importante evolução.

A política de hoje deixou de ser feita apenas à medida dos meios de comunicação social. Estes deixaram de ter o exclusivo na intermediação da mensagem. O tal one-man show adapta também agora a sua mensagem directamente a cada cidadão (ou grupo de cidadãos), porque o que se pretende é que o eleitorado sinta que está perante uma comunicação personalizada. Barack Obama foi inovador nesse campo na sua primeira campanha eleitoral, ao potenciar as novas ferramentas de comunicação para “falar directamente” a cada pessoa. Uma representação de proximidade muito eficaz. Donald Trump, mais tarde, elevaria essa teatralidade a um outro patamar. Para o bem e para o mal, ambos fizeram escola em matéria de comunicação política.

REUTERS/Larry Downing
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Quase nenhum político actual é indiferente à lógica da representação permanente. Quanto maior a dimensão e a ambição desse político, maior a exigência da teatralidade. O circo mediático assim o exige, ao qual se juntaram mais recentemente nessa exigência as redes sociais, dentro da sua linguagem vociferante e trituradora de lógica binária. Neste contexto teatral, as ideias programáticas aparecem, quase sempre, como meros adereços comunicacionais, especialmente em tempo de campanha eleitoral. Como escreveu Schwartzenberg, a “política eram ideias, hoje são pessoas, ou melhor, personagens”. Declaração ainda mais pertinente nos tempos actuais.

Quem conhecer minimamente os mecanismos do funcionamento da comunicação política actual sabe que se trabalha quase sempre em função de um político específico, e não de um projecto político transversal. O objectivo é induzir no eleitorado uma percepção sobre esse político, através de um modelo comunicacional no qual a forma se sobrepõe ao conteúdo. Quanto melhor a sua prestação comunicacional, maior é a sua capacidade de penetração no eleitorado. É uma encenação onde todos participam conscientemente. Políticos de um lado, jornalistas e comentadores do outro, e, no meio, as ruidosas redes sociais. A verdade é que a maior parte das pessoas não vota com a razão: ou vota com o “bolso” ou com afeição. Uma equação simples, porque a maior parte do eleitorado não está disponível, nem tem predisposição para acompanhar as nuances diárias da político-partidária, que tanto alimentam a tal “bolha” politico-mediática.

E a propósito dessa “bolha”, quanto valerá em termos de representatividade eleitoral? Fazendo um exercício especulativo, dir-se-ia que 50 mil, 100 mil votos no máximo. Mas atenção, como aqui escrevi no PÚBLICO há sensivelmente dois anos, “as massas não são assim tão amorfas como o conceito sociológico nos quer fazer querer, já que na sua sapiência popular acabam por saber identificar o papel natural reservado a cada um dos políticos. E é dentro desse quadro previsível que esperam que actue e represente”. Os políticos, assim como os seus estrategos e conselheiros, estão conscientes disso e é com base nessas expectativas que preparam as suas campanhas. Mais do que as ideias e as propostas, os candidatos “puxam” pelas qualidades e características inatas que o eleitorado lhes reconhece ou anseia reconhecer. O grosso dos eleitores identifica-se mais facilmente com este tipo de dinâmicas, do que propriamente com programas ou medidas eleitorais, porque a decisão de voto não resulta propriamente de um processo racional.

A campanha eleitoral e os debates televisivos servem, sobretudo, para transmitir impressões, sensações, emoções e paixões. Os candidatos – pelo menos os mais profissionais – treinam seus “números” e soundbites. Pelo meio, lá está, as ideias surgem apenas como adereços, porque essas, na lógica da comunicação de massas, são pouco úteis nos dias que correm. Apesar de tudo, comentadores e analistas, dentro do seu quadro mental, dedicaram-se ao exercício quase infantil de atribuição de notas aos supostos vencedores e vencidos dos debates eleitorais, mas talvez devessem ter tido em consideração que, na comunicação política entre candidatos e eleitores, uma determinada prestação só é vencedora se conseguir mobilizar, não aqueles comentadores, mas o povo. E isso só é possível aferir com estudos de opinião feitos imediatamente a seguir aos debates, o que em Portugal praticamente não existe. Uma boa análise de um debate ou acção de campanha, em termos de comunicação política, é aquela em que deixamos de lado as nossas preferências e tentamos perceber a relação entre os objectivos do candidato e a eficácia da sua prestação junto do seu eleitorado alvo. É esta a equação que importa nas urnas. É para isso que se trabalha nas máquinas internas das campanhas e partidos.

A lógica comunicacional dentro do sistema político é muito mais primária quando se está em campanha eleitoral, em que as mensagens são compactadas em segundos televisivos, títulos de jornais ou meia dúzia de caracteres nas “redes”. Os jornalistas desinteressam-se pelo escrutínio (os absurdos 25 minutos de debate televisivo são exemplo disso) e privilegiam o show de consumo rápido e, da parte do povo, ninguém se dá ao trabalho de ir ao fundo das questões ou das propostas (quantos portugueses terão ido aos sites dos partidos consultar os programas eleitorais?). É no âmbito desse modelo de combate, enquadrado na superficialidade e na aparência, que os staffs políticos, marketeiros e consultores de comunicação trabalham junto dos seus políticos e candidatos. Trabalhar a comunicação de uma “supervedeta” à qual lhe estão atribuídos os “grandes papéis”, como diria Schwartzenberg, é trabalhar na sua constante representação diária, tendo como fim o poder em si mesmo, e não tanto o projecto político. Neste tempo da política espectáculo, é o poder que se joga nas urnas e não tanto a ideia.

Poderá o leitor dizer que é uma visão um pouco cínica. Talvez, mas é aquela que corresponde à realidade por detrás da cortina que separa a esfera pública dos bastidores da política. Da esquerda à direita, cada um com o seu estilo, com os seus “truques” e encenações. Alguns mais sofisticados do que outros, com mais arte e eficácia do que outros. Sempre foi assim em comunicação política. Nada disto invalida o espírito de missão que cada candidato possa ter pela causa pública, mas a verdade é que quanto mais responsabilidades recaem sobre o político, mais ciente ele está da dificuldade em extravasar para lá de um certo limite do quadro razoável de intervenção programática. Essa noção pragmática é, de certa maneira, transversal a políticos com ambição de liderar massas. O povo, sobretudo o mais “flutuante”, há muito que percebeu que, na disputa pelo grande prémio eleitoral, o voto nas urnas serve, sobretudo, para a distribuição de poder. Talvez alguns comentadores e analistas continuem a achar que o que está em causa são ideias e propostas. Neste aspecto, o povo já demonstrou ser muito mais sábio e perspicaz.

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