A Europa sob teste de alta voltagem

Parece claro que o projeto europeu tem de passar para uma nova fase assente numa transformação democrática. A fase tecnocrática esgotou.

Com alguns matizes nacionais, toda a população europeia está a passar pela mesma experiência coletiva que vai marcar a sua história e a sua identidade. Entramos em 2022 com um misto de alívio e de angústia. E aumentou a perceção de que alguns problemas só podem ser resolvidos com mais forte ação europeia.

Mas a União não tem os meios financeiros e políticos necessários para tal. Este paradoxo só pode ser resolvido se a UE se assumir como uma entidade política com meios para sustentar as suas escolhas não só económicas, mas sociais, ambientais, culturais e de política externa. Estamos a falar duma nova fase do projeto europeu.

um movimento intelectual europeu expressivo nesse sentido, mas a política europeia está suspensa dos resultados que forças pró-europeias e mais progressistas possam alcançar em Itália e, sobretudo, em França, com uma presidência europeia de alta voltagem a cargo. O resultado que elas obtiveram na Alemanha é promissor, e vamos também ver em Portugal até que ponto.

O primeiro desafio vai continuar a ser dominar a pandemia. Há agora uma diferença muito significativa relativamente ao ano passado porque a descoberta e difusão da vacina permitiu reduzir visivelmente os riscos mortais, mas ainda não sabemos como prevenir e controlar as novas variantes que possam vir. Houve importantes progressos, mas ainda estamos longe de contar com uma União Europeia da Saúde capaz de prevenir e combater pandemias com cuidados de saúde de reação rápida e inteligente e de acesso universal. E, mais do que isso, continuamos a fazer de avestruz quanto à necessidade de estender esse acesso a todo o planeta para realmente dominarmos a pandemia. É isso que se vai jogar em 2022.

O segundo desafio vai continuar a ser salvar empregos e empresas viáveis protegendo-os das vagas de pandemia que estão a suceder-se -até quando? Com esquemas de proteção escorados pelo recente reforço histórico da solidariedade europeia e com uma gestão cada vez mais sofisticada do dilema entre actividades humanas e proteção da saúde pública. É verdade que a pandemia atinge potencialmente todos, mas também é agora evidente que essa probabilidade é muito maior em certas profissões e sectores de atividade, o que que tem exponenciado velhas e novas desigualdade sociais, regionais e entre países. É isso que se vai jogar em 2022 com os planos de recuperação e resiliência, que também têm de ser planos de convergência e transformação em profundidade dum modelo socio-económico - que deixou de ser viável.

Como, entretanto, a mudança climática está já a traduzir-se por múltiplos riscos e catástrofes, a transição ecológica tem de ser acelerada nos vários setores críticos dos transportes, à indústria e à energia com alta sensibilidade para os impactos sociais. Há decisões difíceis a tomar para garantir consistência ao nível europeu na implementação do seu Pacto Ecológico. A controvérsia mais recente sobre aceitar ou não o nuclear na matriz energética para descarbonizar, aí está para o ilustrar. E também aqui - como ficou patente na última COP - este combate não terá o resultado necessário enquanto os países desenvolvidos não aumentarem a solidariedade financeira com os países em desenvolvimento, ao mesmo tempo que instituem uma taxa carbono para as suas fronteiras, como pretende agora a UE. É este nível de vontade política em permitir a todos avançar mais rápido que vai estar em jogo em 2022.

Ao mesmo tempo, a transformação digital foi acelerada em todos os domínios e tem de ser formatada no bom sentido, antes que seja tarde demais. Regulando a atuação das grandes plataformas digitais, mas também oferecendo alternativas de produção de novos serviços e bens que estejam alinhados com as preferências europeias em matéria de proteção da privacidade, dos serviços públicos de saúde e educação, da qualidade de vida e das condições de trabalho, seja ele em plataformas ou em teletrabalho. É isso que se joga em 2022 com o novo pacote de medidas em discussão sob o rótulo da Bússola Europeia Digital - apontando uma via europeia diferente da americana e da chinesa.

Finalmente, todo o quadro global do projeto europeu está em profunda mutação: a concorrência sistémica entre os Estados Unidos e a China e o regresso à lógica das áreas de influência, como se vê agora nas atuações mais ameaçadoras da Rússia. Momentos de clarificação vão marcar o calendário de 2022: a conferência da Organização Mundial do Comércio, um nova COP sobre o Clima, a cimeira do G-20 sobre o relançamento económico e a cimeira da NATO onde questões chave vão estar em cima da mesa: deve a China ser considerada a par da Rússia como alvo de preocupação? Como lidar com a fronteira oriental da Europa com Balcãs de Leste, a Bielorússia e a Ucrânia como epicentro? E como articular a NATO com o reforço da capacidade de defesa europeia em preparação - num período em que as ameaças à segurança se diversificaram da energia ao digital?

Acima de tudo, o que vai estar a prova em 2022 é a coesão interna europeia: no desenvolvimento duma ação externa mais articulada, coordenada e influente; numa estratégia de alargamento que permita estabilizar os Balcãs de Leste e a fronteira europeia; numa verdadeira política europeia de emigração e de asilo que deixe de nos envergonhar; no reforço duma capacidade de investimento a longo prazo que assente num orçamento europeu financiado por dívida europeia com base em recursos próprios e em regras orçamentais nacionais atualizadas; no estabelecimento europeu dum salário mínimo; e na efetiva garantia de que o Estado de direito, com sistemas judiciais independentes e eficazes, imprensa independente e plural são respeitados - como condição sine qua non de ser membro da UE.

Com tudo isto, parece claro que o projeto europeu tem de passar para uma nova fase assente numa transformação democrática. A fase tecnocrática esgotou. O seu motor principal deveria passar a ser o dos cidadãos europeus a exigirem mais ação à escala europeia porque só ela pode viabilizar resultados visíveis em relação a certos bens públicos que se tornaram essenciais: proteção contra pandemias, proteção contra o desemprego tecnológico, investimento criador de emprego, transferência da carga fiscal para novas fontes, convergência para direitos básicos nos domínios social, digital e ambiental, assim como proteção contra novas ameaças à segurança e à democracia. Este será o teste de 2022, também para a Conferência sobre o Futuro da Europa em curso - sem o que muitas expetativas sairão frustradas.

(A autors escreve segundo o novo acordo ortográfico).

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