O homo digitalis, do silo industrial ao túnel digital das plataformas

Assistiremos a uma grande transformação tecnológica que nos conduzirá da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação.

Este é o tempo do homo digitalis. Vivemos em plena era das multidões, as plataformas digitais e suas aplicações são, cada vez mais, o novo lugar central da nossa vida coletiva. Numa extremidade, a multidão e a Internet, na outra extremidade, o smartphone e o internauta. No meio, os operadores de telecomunicações, os servidores, as plataformas digitais e as aplicações informáticas. Estamos a falar de revolução digital e de transição do silo industrial para o túnel digital do capitalismo das plataformas. Nesta grande transformação assistimos à emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente ainda ao domínio da espécie humana, até que a inteligência artificial e a sociedade imersiva do metaverso e seus avatares nos transportem ao transumanismo e ao pós-humanismo!

Como sabemos, a tipologia da economia das plataformas é muito variada, a saber: de motores de busca na Internet (Google), de rede social (Facebook), de comércio em linha (Amazon), de aplicações para terminais móveis (Appstore), de mobilidade urbana (Uber), de produção de conteúdos (Youtube), de consumo colaborativo (Airbnb), de recrutamento profissional (Linkedin), de trabalho assalariado ou independente (Jobbying), de financiamento participativo (Kickstarter), entre muitas outras em praticamente todos os setores de atividade. O homo digitalis será um produto direto desta economia das plataformas e esse facto terá um impacto decisivo sobre inúmeros aspetos da nossa vida coletiva, por exemplo:

  • Sobre a origem e natureza das plataformas, globais ou made in;
  • Sobre o modelo de negócio que adotam, mais extrativista ou mais colaborativo;
  • Sobre o modo como as plataformas alteram as rotinas do consumidor/utente/utilizador;
  • Sobre a educação e o grau de literacia e acesso digitais;
  • Sobre os efeitos diretos e indiretos nos mercados de trabalho;
  • Sobre as alterações de poder nas cadeias de valor mais tradicionais;
  • Sobre as relações entre as coletividades territoriais e as economias locais;
  • Sobre o impacto no rendimento e na fiscalidade locais;
  • Sobre o modelo de ocupação do território, com mais dispersão ou mais aglomeração;
  • Sobre as relações das instituições de ensino superior e o emprego jovem qualificado.

No conjunto, assistiremos a uma grande transformação tecnológica que nos conduzirá da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação. Uma outra faceta desta grande transformação digital diz respeito à nossa pegada digital e respetiva rastreabilidade, uma vez que a nossa vida individual estará praticamente toda digitalizada: nos motores de busca, nas redes sociais, nas centrais de reserva, nas plataformas de compra e venda, de entretenimento, de educação e formação, de financiamento participativo, de recrutamento e trabalho independente, de aluguer de ativos subutilizados, e em inúmeras aplicações que fomos descarregando, sem muito critério e com uma dose de risco crescente relativamente à nossa privacidade e liberdade pessoais.

Dito de outra forma, na sociedade digital que a pandemia veio claramente acelerar o produto somos nós. Somos a mercadoria trocada nos chamados mercados com duas faces ou bifaces. Por um lado, somos adquiridos gratuitamente através dos rastos que deixamos em muitas plataformas (a primeira face do mercado) e, depois, somos vendidos a terceiros, geralmente empresas e sociedades, após devidamente perfilados, e mediante o pagamento, por parte dessas empresas e sociedades, de uma comissão à plataforma que faz a respetiva intermediação (a segunda face do mercado). Ou seja, nessas inúmeras plataformas, tudo o que nós dizemos, fazemos, sentimos e experimentamos deixa um rasto e produz informação preciosa para as plataformas de intermediação. Depois de extraída, essa informação converte-se num perfil personalizado de um consumidor/utente/utilizador e é este perfil personalizado que tem imenso valor para o universo mercantilista do capitalismo digital das plataformas.

Neste mercado com duas faces, o homo digitalis é produzido sob a forma de digital labor e entra no túnel por três vias diferentes, mas complementares: em primeiro lugar, como especialista, ele trabalha por conta de outrem numa empresa tecnológica e, dessa forma, já acedeu à sociedade pós-industrial do século XXI, em segundo lugar, como trabalhador independente, ele presta diversas colaborações profissionais em condições laborais muito variadas e acede, digamos, à sociedade dos bens colaborativos, por último, enquanto utilizador frequente de plataformas e redes sociais ele deixa a sua pegada digital e entra plenamente na sociedade do Big Data e na era do capitalismo da vigilância.

Nestas três vias de acesso o homo digitalis passa por uma verdadeira transfiguração no que diz respeito à sua condição sócio-laboral. Estamos, digamos, em plena transição do silo industrial do capitalismo do século XX para o túnel digital do capitalismo das plataformas. As diferenças estão cada vez mais claras. Na sociedade industrial o operário está sindicalmente enquadrado e beneficia de um contrato coletivo de trabalho e de um direito laboral que o protegem das arbitrariedades da entidade patronal, na sociedade digital assistimos a uma fragmentação da condição laboral e da proteção social. No capitalismo industrial havia a exploração e alienação do operário industrial, hoje temos a alienação e adição do trabalhador digital, sob múltiplas formas: sem horário de trabalho e regimes variáveis de teletrabalho, sem contratação coletiva, em regime de prestação de serviço, sem sindicato, sem ordem profissional, sem regime regulamentar e regulatório, em modo de outsourcing, sem seguro coletivo, no final, em regime precário de pluriatividade e plurirrendimento e, muitas vezes, desligado de uma comunidade verdadeiramente empresarial, já para não falar da invasão da sua comunidade familiar e, muito em breve, da sua associação intima com a inteligência artificial que lhe trará grandes surpresas e dissabores.

Em todo este contexto, a passagem bem sucedida do silo industrial para o túnel digital do capitalismo das plataformas depende, em larga medida, da consistência das respostas à nova geografia económica das plataformas digitais, ou seja, ao modo como será concretizada a agenda digital para o futuro próximo: fratura digital e cobertura digital dos territórios(1), polarização digital e novas assimetrias (2), plataformas e modelos de mobilidade e ocupação do território (3), geoeconomia das plataformas e novos rearranjos socioinstitucionais (os atores-rede)(4), plataformas, serviços de proximidade e economias de aglomeração (5), plataformas, literacia, competências digitais e modelos de ensino-formação (6) plataformas, coletividades territoriais e modelos de negócio made in (7).

Um bom exemplo desta nova geografia digital diz respeito às relações entre as plataformas digitais e os ecossistemas locais formadas pelas coletividades territoriais, as economias de rede locais e as instituições de ensino superior regionais. Neste relacionamento triangular, um primeiro aspeto diz respeito à cooperação entre os operadores de telecomunicações em matéria de infraestruturação do território sem a qual o acesso aos benefícios das plataformas fica bastante prejudicado (a política de roaming). Um segundo aspeto diz respeito ao grau de literacia digital da população e respetivas competências digitais, o que, só por si, levanta um questionamento radical dos modelos de ensino, educação e formação profissional. Um terceiro aspeto diz respeito ao acesso aos dados públicos existentes, o que levanta questões fundamentais como a regulação da privacidade, mas, também, a modernização digital da administração. Um último aspeto, porventura o mais decisivo, diz respeito aos incentivos para fazer emergir plataformas digitais adequadas às necessidades das economias locais e regionais, o que levanta a questão crucial dos modelos de negócio das plataformas cooperativas ou colaborativas de âmbito local ou made in.

Notas Finais

Como sabemos, a geoeconomia das plataformas promove uma cura de emagrecimento nas intermediações mais convencionais, sejam elas económicas, financeiras, institucionais ou associativas e essa razão já seria suficiente para promover a transformação digital das organizações privadas e públicas. Num país como Portugal, onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal, não é tarefa fácil montar um estaleiro de pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em estreita ligação com centros de investigação e start up e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública. No nosso país o modelo-silo é, ainda, predominante e as corporações burocrático-administrativas não vão facilitar essa transição do silo administrativo para o túnel digital, até por uma razão adicional, elas estão totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas, europeias e nacionais, que lhes preenchem, por agora, a sua missão corporativa.

Em síntese final, na transição do silo industrial e administrativo para o túnel digital do capitalismo das plataformas, o trabalho digital e o homo digitalis passarão para as categorias híbridas e líquidas da sociedade do século XXI, sob múltiplas formas e modalidades. Não só teremos de encontrar um denominador comum para as diversas modalidades de trabalho - trabalho por conta de outrem, trabalho por conta própria, trabalho colaborativo, trabalho comunitário, trabalho voluntário, trabalho on demand, biscastes e macjobs – como teremos de encontrar um novo modus vivendi para o ambiente de trabalho, que vai desde o teletrabalho mais isolado do nómada digital até aos adjuntos autónomos da inteligência artificial e, dentro em breve, até à família metaverso dos avatares transumanistas e pós-humanistas. À nossa frente, um verdadeiro mundo maravilhoso.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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